Victor Heringer - Glória

Literatura brasileira contemporânea
Victor Heringer - Glória - Editora Companhia das Letras - 296 Páginas - Capa: Mateus Valadares - Lançamento: 27/09/2018

A vida foi muito curta para o carioca Victor Heringer. O final precoce de uma carreira brilhante aos 29 anos, tanto na prosa quanto na poesia, deixou o meio literário nacional chocado quando, em março de 2018, veio a notícia absurda de sua morte. O jovem escritor deixou uma bibliografia composta por: automatógrafo (poesia, 2011), Glória (romance, 2012 – vencedor do Prêmio Jabuti de 2013), Lígia (contos, 2014) e O amor dos homens avulsos (romance, 2016 – finalista dos prêmios Rio de Literatura, São Paulo de Literatura e Oceanos). Além de talentoso, Victor era muito querido pelos colegas. Recomendo visitar esta página do IMS com depoimentos de escritores e profissionais da área, assim como trabalhos dele em vídeo.

O romance Glória, publicado originalmente pela editora 7Letras e relançado agora pela Companhia das Letras, é uma ótima oportunidade para conhecer a prosa refinada de Victor Heringer. Já tinha lido que o estilo do autor é "machadiano", o que de fato constatei como sendo apropriado, tanto pela erudição quanto pela melancolia disfarçada em um texto aparentemente bem-humorado, além, é claro, da habilidade em retratar os costumes de época. No entanto, outras referências literárias ocorrem ao leitor durante a leitura de Glória. Entre elas, sem dúvida está Kurt Vonnegut pela fina ironia na crítica social e personagens que não se ajustam em modelos pretensamente normais; escritores como Boris Vian e Antonin Artaud pelo humor nonsense típico do movimento surrealista francês. Contudo, mesmo com tantas influências, o texto deixa uma sensação de estarmos lendo algo inédito, o grande truque da arte.

A ironia é o combustível principal de Glória ao acompanhar a trajetória de uma inusitada família carioca, os Alencar Costa e Oliveira, cujos descendentes sofrem de melancolia aguda, um mal que tem levado à morte sucessivas gerações. Benjamim, Daniel e Abel, são três irmãos que perdem o pai muito cedo e são criados pela mãe, Noemi. O restante da família tem a certeza de que a causa da morte foi a leitura das obras completas de Maiakóvski, fato que teria desencadeado o processo de melancolia. Logo, apesar da letra fria do atestado de óbito declarar apenas "infarto agudo do miocárdio", todos sabem que morreu de desgosto.
"Ninguém sabia dizer ao certo a causa da morte do marido. As senhoras da família diagnosticaram o de sempre: morreu de desgosto. Esta era a única real tradição dos Costa e Oliveira: morrer de desgosto. Outras famílias fazem festas memoráveis, se reúnem todo domingo para almoçar ou são conhecidas no ramo da odontologia, mas os Costa e Oliveira não. Os Costa e Oliveira se reconheciam pelo fato de morrerem todos de desgosto. Contraíam uma tristeza qualquer, que zombava tanto da medicina avançada quanto do século XX, e em dois tempos morriam dela. Era uma espécie de maldição, mas tinha a virtude de unir a família num único sentimento. Alguns morriam de amores, outros de bilhetes de loteria não premiados, outros ainda de uma substância misteriosa que as tias mais velhas chamavam de bile preta e que magoava as pessoas. O marido tinha morrido de Maiakóvski, segundo a maioria das velhas, apesar de o atestado de óbito rezar infarto agudo do miocárdio." (Pág. 28)
Benjamim, o filho mais velho, mora na Glória em 2010, um bairro do Rio de Janeiro que, apesar do nome pomposo é "apenas mais um lugar de passagem. Não se permanece na Glória, não se vai a ela, não há volta; passa-se pela Glória em direção a Botafogo, Ipanema ou Leblon" Ele é um artista plástico frustrado que passa os dias em alguma ocupação burocrática no Departamento de Museologia, Restauração e Reparo. A sua vida está para mudar quando se apaixona por Paula, uma vizinha do prédio onde mora. Sem coragem para abordá-la diretamente, ele tenta estabelecer contato em uma sala de bate-papo on-line, um ambiente virtual típico do início do século XXI, precursor das redes sociais.
"O endereço do Café Aleph não era um segredo. Qualquer pessoa com acesso à internet podia encontrá-lo e entrar, sem necessariamente ter sido convidada. Grande parte dos internautas chegava até ele achando que se tratava do site de um estabelecimento real, numa cidade de fato, frequentado por pessoas de carne e osso, com nomes e certidões, mas esse não era o caso. O Café Aleph era um fórum virtual de discussões sobre arte, com o design inspirado nos cafés parisienses da primeira metade do século XX, no qual os usuários quase nunca revelavam seus antropônimos em conversas públicas, preferindo escolher um dentre os muitos nomes importantes da história da cultura. Assim, a maioria dos que acessavam o Aleph por engano se espantava com a profusão de Caravaggios, Malatestas, Ionescos, Alighieris, Monks etc. e etcétera, e ia embora. Um ou outro, porém, acabava gostando da ideia, ou do papel de parede em tons pastel do site, e passava a frequentá-lo. Escolhia um apelido e aprendia rapidamente a imaginar cômodos amplos e dourados, tapeçarias, espelhos biselados e móveis em estilo art nouveau, bem como a se comportar como um intelectual cosmopolita brasileiro fingindo ser um morto indispensável para a humanidade." (Págs. 88 e 89)
Já o irmão mais novo, Abel, vira pastor de uma igreja evangélica e viaja para a África, retornando ao Brasil com um projeto de criar a sua própria igreja em Santa Maria Madalena, no interior do Rio de Janeiro. Nesta cidade vive d. Letícia, a última das tias, que já escreveu trinta e cinco cadernos sobre a saga da família, um livro que terá o título de "Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira", fruto de décadas de pesquisa. Após a morte de d. Letícia, Abel herda uma fortuna com a condição de publicar o livro e acaba desenvolvendo uma teoria em seus cultos sobre a epidemia que representa o mal do século XXI: o desgosto, a depressão e a tristeza. Um vídeo com a pregação de Abel viraliza na internet e parece confirmar as últimas palavras da tia: "Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira."

Talvez a morte precoce de Victor Heringer nos ensine que, afinal, existem coisas mais importantes do que a literatura, como ele mesmo escreve em uma passagem deste romance: "é um desperdício dar tanta importância à literatura se o tempo está bom". Ainda assim, quem sabe o exercício de ler e escrever possa representar algum tipo de identificação, pertencimento ou, até mesmo, salvação, uma palavra tão grande e ambiciosa quanto glória e que, contraditoriamente, nos faz lembrar da nossa fragilidade humana.

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