Eric Nepomuceno - Coisas do mundo

Liteatura brasileira contemporânea
Eric Nepomuceno - Coisas do mundo - Editora Patuá - 230 Páginas
Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2021.

Se há uma coisa que podemos afirmar com certeza do escritor, jornalista e tradutor Eric Nepomuceno é que ele é o mais latino-americano dos nossos autores; talvez por ter traduzido obras de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Eduardo Galeano e Gabriel García Márquez, entre outros, tenha de alguma forma assimilado um pouco do estilo de cada um desses escritores. O relançamento pela Editora Patuá da antologia de contos Coisas do mundo, quase trinta anos após a sua publicação original, é uma ótima oportunidade para constatar a originalidade e atualidade dos textos após a passagem do tempo e uma chance de reler um autor que tem o seu lugar garantido entre os grandes nomes da literatura brasileira.

Em cada uma das narrativas da antologia, identificamos uma atmosfera mágica tangenciando a realidade e criando uma espécie de univeso paralelo no qual personagens desesperançados e sem rumo tentam se convencer de que há alguma saída para seus questionamentos e dramas pessoais, contando as batidas do pé direito no chão do elevador, por exemplo, enquanto "desistem das pequenas e amargas derrotas dos últimos tempos", repetindo as mesmas palavras e "repartindo forças e mentiras por um tempinho a mais", como o protagonista de Meu pé direito, ou o personagem de Coisas do mundo, o conto que empresta o título ao livro, quando afirma que "a vida é cheia de surpresas e que o mundo tem suas coisas".

"Não é, definitivamente, um trabalho normal. Para começo de conversa, as pessoas deste ofício nem sempre usam seu verdadeiro nome. Nunca se sabe quem, ao atender um telefone ou ser apresentado a alguém ou chamado por alguém, está usando seu nome de antes, o de sempre, ou o de agora, o do ofício. Com o tempo a gente acaba se acostumando, e volta e meia leva um susto quando encontra algum antigo vizinho ou colega de escola. Comigo aconteceu, e foi como se aquele rosto dos tempos de antes estivesse chamando outra pessoa, alguém que já fui e não sou mais, sem ter jamais deixado de ser. A maioria veio parar aqui por alguma incompatibilidade com o mundo, além de certo idealismo, é claro. Somos todos – digamos – desajustados, um tanto sem volta. Aliás, uma das características deste nosso ofício é justamente esta: não existe volta. Há os que são encostados, os que se aposentam, os que querem desistir e não podem. E há, claro, os que morrem por acidente de trabalho. Somos um perigo para nós. Cada um de nós representa um risco potencial para todos os demais. Você vigia e é vigiado, tem vida própria mas que nunca chega a ser uma vida normal: em nenhum momento quem está neste ofício esquece que somos o que somos. Isto acaba criando em cada um de nós certas manias, certas obsessões. No fundo, é tudo muito curioso."O nosso ofício (p. 56)

Tanto tempo é um dos contos mais originais e bem construídos, narrado incialmente em primeira pessoa por uma protagonista que cresceu em um colégio interno, recebendo visitas esporádicas do pai: "Ele vinha de vez em quando, muito de vez em quando. Era alto e tinha bigodes e braços grossos e vestia sempre uma camisa branca e não sorria nem dizia muita coisa, vinha de quando em quando, sempre era domingo, e ficava ali, no pátio, e conversava comigo e com minhas duas irmãs, mas pouco. [...]" Toda a situação, é claro, decorre do fato de que o pai tem uma outra família para cuidar. Isso fica claro ao longo do conto e, no final, destacado abaixo, ocorre uma sutil alteração da narrativa para segunda pessoa, simplesmente genial.

"E então, é assim: você vem pela calçada, você recorda, você sabe: o muro que era branco, se é que foi, e agora é amarelo-claro; o portão, que é e era verde, mas está cambaio; e você bate palmas, pois não há campainha, e lá de dentro vem uma voz de mulher que pergunta o que é; e você se apruma, fica em silêncio, e nisso vê que vem vindo ele, pela calçada vem vindo ele, curvado, e você pensa e sabe que alguma coisa muito importante vai acontecer, e no fundo é só uma manhã de domingo, nada mais que um domingo de manhã, e você não diz nada, não responde à voz de mulher que pergunta outra vez o que é, e vê como ele vem vindo, curvado, a camisa ainda branca, será outra, por certo, mas sempre branca, e o bigode, e os olhos claros, os mais claros que você viu na vida, e ele chega perto e você sorri, e pensa em todos os homens para os quais sorriu enquanto eles iam chegando, e no cheiro deles, e não há nada que se compare ao cheiro que você vai reencontrar agora, e os olhos, os olhos mais claros do mundo, agora encobertos por uma estranha nuvem de tempo e amargura, e você o abraça, sorrindo, e ele se espanta um pouco e pergunta: 'É você?'." - Tanto tempo (p. 101)

Já em Coisas da vida, o protagonista se distrai de seus problemas pessoais com o carro italiano de cinco marchas que acaba de adquirir, a tranquilidade e o conforto da casa que alugou na montanha e a rotina do seu dia de trabalho, quando recebe uma ligação de emergência do amigo que espera, juntamente com a esposa, o início de uma cirurgia no fillho, um bebê de um mês e meio, devido a um problema congênito. Ele decide apoiar o amigo e, ao longo da noite, acompanha o drama do casal enquanto espera o resultado da operação. Toda esta situação funciona como um choque de realidade que o faz perceber a solidão da sua vida atual e o filho que nunca teve.

"Naquele tempo, eu estava trabalhando com certa dificuldade. Estava sozinho e sentia uma estranha, profunda e incômoda piedade. Uma compulsiva piedade a esmo. Acordava no meio da noite recordando pessoas das quais fazia tempo não tinha notícia, e sentia por cada uma delas uma imensa piedade, porque não eram felizes. Repassava na memória cada rosto, cada nome, e me perguntava se alguma vez tinham sido felizes. Às vezes tornava a fechar os olhos e continuava vendo aqueles rostos, e no torpor de um sonho que não acabava de chegar eu tentava um sonho, no qual eu dizia às pessoas, aos rostos, que podiam contar comigo, que eu era capaz de entendê-las, que sentia por elas e por mim uma piedade infinita. Naquele tempo eu não era feliz, mas não pensava em nada disso quando o telefone tocou. A única coisa que me ocorreu foi pensar quem me telefonaria naquela hora, e pensei que acabara de perder o filme que o canal 5 havia programado para as onze da noite." - Coisas da vida (p. 125)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Eric Nepomuceno nasceu em 1948 e é autor de livros de contos (A Palavra Nunca, 40 Dólares e outras histórias, Quarta-feira, Antologia Pessoal) e de não ficção (O Massacre, A memória de todos nós, Cuba: anotações sobre uma Revolução, entre outros). Seus contos foram traduzidos para holandês, francês, húngaro, inglês e castelhano. Traduziu livros de alguns dos mais importantes autores hispano-americanos contemporâneos, como Julio Cortázar, Juan Rulfo, Eduardo Galeano e Gabriel García Márquez. Em três ocasiões ganhou o prêmio Jabuti, o mais importante no país, para as suas traduções. Como autor, foi finalista em quatro ocasiões e numa, pelo seu livro O Massacre, obteve o segundo lugar. Entre 1973 e 1983 foi correspondente estrangeiro na Argentina, Espanha, México e América Central. Entre 1965 e 1986 atuou no jornalismo cotidiano. Atualmente, é colaborador do jornal argentino "Página 12" e colunista do mexicano "La Jornada".

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