Geovani Martins - Via Ápia

Literatura brasileira contemporânea
Geovani Martins - Via Ápia - Editora Companhia das Letras - 344 Páginas - Capa: Alceu Chiesorin Nunes - Imagem de capa: Trem, de Maxwell Alexandre, 2018 - Lançamento: 2022.

A Via Ápia, também conhecida como Regina Viarum (rainha das estradas) foi uma das obras mais importantes da antiga Roma com a construção iniciada em 312 a.C. e atingido em 264 a.C. a maior extensão de 600 quilômetros. No Brasil, a Via Ápia é o principal acesso à favela da Rocinha, localizada entre os bairros da Gávea, Vidigal e de São Conrado, na Zona Sul do Rio de Janeiro, considerada, segundo os dados do IBGE de 2022, o maior "aglomerado subnormal" do país. Após décadas de políticas públicas inadequadas, a Rocinha apresenta territórios densamente povoados e sem condições básicas de infraestrutura, sendo os moradores estigmatizados pela população das áreas privilegiadas da cidade e vítimas constantes da violência policial em nome do combate ao tráfico de drogas.

O romance de Geovani Martins dá voz para essa população marginalizada no período entre 2011 e 2013, dividido em três partes: antes, durante e depois da invasão das Forças Armadas e das Polícias do Estado para a implantação da vigésima oitava Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Os múltiplos protagonistas são alguns jovens "crias" da Rocinha: os irmãos Washington e Wesley que tentam sobreviver no mercado informal como garçom ou animador de festas infantis e moram com a mãe, Dona Marli, uma síntese das mães da favela, carinhosa, mas ao mesmo tempo dura na educação dos filhos. Completam o grupo os três amigos: Douglas, Murilo e Biel que dividem uma casa próxima à via Ápia, ameaçados de despejo devido às confusões decorrentes do consumo de álcool e maconha.

"Dava medo mesmo de perder aquela casa. Espaçosa, bem localizada, tirava onda. A travessa Kátia era uma das melhores ruas da Via Ápia. Em menos de dois minutos chegavam no ponto de ônibus, tinha padaria vinte e quatro horas e vários lugares pra comer, desde os PFS de sempre, até japonês, pizzarias, outras paradas. Sem contar que ficava a vinte minutinhos a pé da praia de São Conrado. A casa só não era perfeita porque o prédio fica entre um puteiro e uma igreja evangélica; e quando não é putaria de um lado, é louvor do outro. E foda mesmo é quando junta tudo, na sexta-cheira do fogo de Cristo. Fora esse detalhe, é só lazer. Eles não se preocupam com dinheiro pro mototáxi, nem sofrem com a falta d'água; dois problemas que a maioria dos moradores não conseguiam escapar. / A neurose crescia porque, além da dificuldade de achar uma casa maneira, ainda iam ter que fazer a mudança. Carregar geladeira em beco, desmontar armário pra depois nunca mais montar de novo, subir colchão na corda, os perrengues de sempre. Só de pensar cansava. Douglas tava decidido: ia fazer qualquer parada pra continuar ali." (pp. 37-8)

Um narrador em terceira pessoa costura aos poucos as relações entre os cinco protagonistas, suas paixões, ambições, desentendimentos e frustrações, em uma linguagem própria, quase um dialeto, que representa a perspectiva das múltiplas vozes da favela. A vida de Washington, Wesley, Douglas, Murilo e Biel, assim como de toda a comunidade, é radicalmente afetada a partir da invasão do morro pelo Bope, em novembro de 2011. Em cada capítulo, alternadamente, são descritas as trajetórias de cada um dos rapazes que tem na amizade o único apoio para sobrevivência e a busca de uma pequena felicidade possível em meio ao caos e a violência que parece aumentar após a implantação da UPP, assim como a ameaça diária que vem dos policiais despreparados.

"O Águia parecia que tava até dentro de casa. Mó barulho sinistro, chegava a tremer o prédio todo. Acordado pelo som que invadia a casa, Biel só teve coragem de botar a cara na janela quando sentiu que o helicóptero já sobrevoava bem longe dali. Nessa hora bateu de frente com a travessa Kátia num silêncio que era até difícil de acreditar. Àquela hora, a feira devia já tá armada no caminho do Boiadeiro e a travessa cheia de gente de um lado pro outro com suas compras, preocupações e expectativas de domingo. Logo depois, deviam subir as portas dos bares, chegar os primeiros clientes. Um pouco mais tarde, a partir das nove, era pra começar o culto na igreja neopentecostal vizinha do prédio ao mesmo tempo que a missa na capela de Nossa Senhora de Aparecida, lá no fim da rua. Mas, dessa vez, Biel olhava pela janela e não via nenhum sinal de vida. / Se tivesse pelo menos maconha, podia fumar até dormir de novo. Mas nem isso. Biel se levantou pra mijar e, na saída do banheiro, aproveitou pra ir no quarto, ver se mais alguém acordou com o barulho do Águia. Tava tudo escuro ainda. Ele ficou de olho nos amigos, mas ninguém se mexia." (p. 143)

A favela da Rocinha é a grande personagem deste romance, tão verdadeiro e forte que só poderia ter sido escrito por um ex-morador, como é o caso de Geovani Martins, que sabe como esses rapazes se sentem: "Crescer vinha sempre junto com vários problemas; aquele monte de sonhos de moleque ficam cada vez mais impossíveis, enquanto a realidade aparece cada vez mais estreita, até fazer a vida se parecer com uma obrigação." Uma obra muito bem escrita e emocionante em muitas passagens porque representa uma rara oportunidade de conhecer essas histórias do ponto de vista interno e capaz de provar o que o autor declarou na sua recente participação durante a FLIP 2022: "A literatura é muito mais do que uma possibilidade de acesso à cidadania, a literatura é uma arma."

"– Obrigado aí por vim comigo. – Faltavam quinze minutos pro ônibus deixar a garagem e Douglas sabia que precisava falar alguma coisa. Ele se ajeitou no banco, começou a organizar suas paradas. – Faz pouco tempo que a gente tá junto, mas tu me conhece, né, Gleyce? Tu sabe que eu não queria meter o pé assim, ninguém quer uma merda dessa. Eu sou cria, pô. Eu sou cria. – Ele se levantou da cadeira, pegou suas paradas e Gleyce foi atrás, cada vez mais próximos do portão de embarque. – A real é que eu nunca imaginei morar um dia em outro lugar, eu juro pra tu, nunca mermo. Isso porque eu conheço tudo ali, eu sei como funciona as coisa, as pessoa, tudo. Mas agora, depois de tudo que aconteceu, eu fico pensando que é esse mermo motivo que tá me obrigando a meter o pé, tá ligada? Eu conheço demais aquele morro. E é muito ódio, é muito ódio o que eu tô sentindo. Papo reto, toda vez que eu vejo um carro de polícia, ou então aqueles filha da puta parado mermo, ou andando em beco, eu juro pra tu, a vontade que eu tenho é de matar todo mundo. Não deixar nenhum pra contar a história. Eu vejo a cena toda aqui ó, bem na minha cabeça. É muito ódio, Gleyce, e eu me liguei que, se eu não fizesse alguma coisa pra fugir disso, aí que ia ser foda, eu ia ficar sufocado. Ou então cair pra dentro e fazer alguma merda... Eu não consigo, papo reto, eu não consigo imaginar que eu vou ter que olhar pra esses cara todo dia sem poder fazer nada. E ainda ligado que se der mole pode rodar igualzinho. Sem neurose, dá pra mim não..." (p. 320)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Geovani Martins nasceu em 1991, em Bangu, no Rio de Janeiro. Trabalhou como “homem-placa”, atendente de lanchonete e de barraca de praia. Morou nas favelas da Rocinha e Barreira do Vasco, antes de ir para o Vidigal. Em 2013 e 2015, participou das oficinas da Festa Literária das Periferias, a Flup. Publicou alguns de seus contos na revista Setor X e foi convidado duas vezes para a programação paralela da Flip. Seu primeiro livro, a coletânea de contos O sol na cabeça (Companhia das Letras, 2018), está sendo adaptado como série e ganhou edições em dez territórios, por casas prestigiosas como Farrar, Straus and Giroux, Faber & Faber, Gallimard, Suhrkamp e Mondadori.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Via Ápia de Geovani Martins

Comentários

João Soares disse…
Excelente blogue. Estou seguindo.
Aguardo sua visita ao BioTerra.
Forte abraço
Alexandre Kovacs disse…
Oi João, obrigado pela visita e comentário. Vou lá comhecer o BioTerra. Grande abraço.

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