João Paulo Parisio - Beija-flor

Literatura brasileira contemporânea
João Paulo Parisio - Beija-flor - Editora Vacatussa - 132 Páginas - Edição, projeto gráfico e revisão: Thiago Corrêa Ramos - Ilustração: Andrea Tom - Lançamento: 2022.

Os oito contos do pernambucano João Paulo Parisio têm em comum a presença de crianças como protagonistas. Contudo, não é a inocência dessas personagens que é abordada pelo autor nas narrativas, normalmente histórias cruéis com situações de violência física e psicológica vivenciadas por meninos e meninas que têm a sua infância invadida e roubada pelo mundo dos adultos, testemunhas involuntárias de cenas brutais entre os pais e alvos de agressões ou até mesmo forçadas a praticar, elas próprias, atos violentos como forma de sobrevivência. É o caso do famigerado homem-aranha dos noticiários, saqueador de apartamentos, que pode ser confundido momentaneamente com um homem, mas sob o olhar atento e generoso de uma das vítimas se torna apenas um menino novamente.

O cenário é sempre uma surpresa, variando entre os grandes centros urbanos brasileiros, áreas rurais ou até mesmo outros mundos que irão gerar antecrianças para povoar o planeta Terra. A época também pode oscilar entre passado, presente ou futuro. Só uma coisa parece não mudar nunca: a capacidade humana de se agredir mutuamente. E as crianças, já se sabe, estão sempre expostas a todo tipo de perigo. Em Pães encharcados, por exemplo, tudo parece normal enquanto o pequeno protagonista, recém-resgatado da escola, aguarda protegido da chuva no interior do carro, o pai retornar da padaria, já antecipando a chegada dos pães quentinhos. Ele não desconfia que um súbito estampido abafado, certamente não resultante de fogos de artifício, irá mudar para sempre a sua vida.

"Antecipou o cheiro e a visão dos pães fumegantes, o gosto, a textura, o calor. Vigiava a entrada da padaria espremida entre sobrados decrépitos, por onde seu pai sumira, e por onde tornaria a aparecer. Compunha na mente a sua volta: sairia da padaria para a rua e a atravessaria a passadas largas, cruzaria a pracinha redonda, vazia entre os bancos, e enfim mais esta rua, chegando ao carro do lado de cá. Aí abriria a porta, tomaria lugar ao volante, ao mesmo tempo jogando, ou depondo, o saco de papel no seu colo, e bateria a porta; aí acionaria a ignição e estenderia a mão até o saco, de onde retiraria um pão dourado e crocante, repartindo-o e entregando-lhe uma metade. Relancearia o filho, ele, com carinho ou simpatia nesse momento. Então prenderia sua parte entre os dentes a fim de alisar o cabelo, depois puxaria e trincaria simultaneamente, passando a mastigar o naco que ficasse na boca enquanto o chevette começasse a sair do canto." - Trecho do conto Pães encharcados (pp. 7-8)

Já em Beija-flor, um dos melhores contos da coletânea, acompanhamos as explorações de um pequeno protagonista ao longo da tarde no engenho que herdará um dia, um texto delicioso que se destaca pelas descrições da natureza exuberante, como a visão da assutadora árvore no centro do Açude Grande: "erguia-se do meio da água uma árvore morta, lançando-se vertical no ar, os galhos nus e retorcidos como braços convulsos voltados para o céu numa súplica. Deram-lhe o nome adequado de Garra do Diabo. No que fora um dia sua copa, saltitavam pardais marotos como pulgas num cadáver." Muitas experiências aguardam o intrépido aventureiro que perceberá na pobreza cenográfica da casa do capataz, a verdade que se escondia até então: da privação deles vinha a sua abundância.

"Havia sentado na beira do Açude Grande qual um aventureiro que decide interromper sua jornada para um breve repouso, embora demandar a mata fosse uma desobediência frontal às recomendações de minha mãe. Ali, de fato, não seria improvável encontrar cobras. Percorria-me uma indistinta sensação de angústia, solidão, perigo e liberdade. Ventava a gosto agora. Os onipresentes pardais começaram a abandonar os galhos da árvore defunta. Tirei uma das pequeninas goiabas do bolso e mordi-a com força, simulando uma fome de náufrago. Como não gostei muito, joguei-a na água. Estiquei as pernas (havia carrapichos por toda parte nas barras dobradas da calça) e apoiei-me nos cotovelos. Senti um gosto de sangue na boca e um certo ardor na gengiva. Lá ia meu dente da frente encravado na polpa rósea da goiaba que flutuava em meio às ondas como uma nau à deriva, o casco esburacado. Não sei se aquilo apenas me surpreendeu ou se eu sorri ainda mais banguelo." - Trecho do conto Beija-flor (p. 26)

Nas palavras do autor, uma noite passada na velha casa de Gilberto Freyre em Apipucos, na companhia de outros escritores assombrados inspirou o conto O segredo dos irmãos Escarião. Deve ter sido mesmo uma noite assustadora, tamanha a sequência de horrores pelos quais passam os dois irmãos Felisberto e Adroaldo, sequestrados por um velho mal-intencionado que carregava o inesperado adereço de um macaco-prego, agarrado aos cabelos. Naturalmente que os dois irmãos já haviam sido orientados a não confiar em estranhos e, no entanto, como bem sabemos, o repertório de peraltices é inesgotável e algumas vezes: "Proibir é esporear o cavalo da desobediência. Tenência de menino evapora ante a possibilidade de uma reinação."

"Ao acordar, Felisberto viu-se numa jaula de madeira amarrada com cipó, num recinto escuro e bafioso. Só a luz trêmula de uma vela iluminava o ambiente, nenhuma entrava por uma janelinha redonda a suas costas, no alto, meio cega de poeira, óculo solitário. Num canto, havia uma pilha de jornais. Olhou para um relógio na parede à direita; estava parado, antiquário. Ao lado, noutra jaula, Adroaldo, grogue. Com uma de duas chaves presas a um aro, que depois pendurou num prego na parede; o velho abriu a portinhola e pegou-o nos braços, enquanto ele soltava balbucios moles parecidos com os de Gumercindo quando falava em sonhos. Deitando-o numa rede, abrindo-lhe as pernas e colocando-se entre elas, de joelhos no chão, o velho lançou mão de uma espécie de estojo de couro para apetrechos de serralheria. Após rasgar sua camisa passou a utilizá-los no corpo de Adroaldo." - Trecho do conto O segredo dos irmãos Escarião (pp. 79-80)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: João Paulo Parisio nasceu no Recife em 4 de setembro de 1982. É autor dos livros Legião anônima (Cepe, 2014, contos), Esculturas fluidas (Cepe, 2015, poesia), Homens e outros animais fabulosos (Patuá, 2018, contos) e Retrocausalidade (Cepe, 2020, romance), com o qual foi um dos vencedores do VI Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura. Tem ainda textos publicados em revistas, jornais e sites especializados. Foi apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”. Instagram: @jpparisio

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