Márcia Barbieri - [Tempo de cão]

Literatura brasileira contemporânea
Márcia Barbieri - [Tempo de cão] - Editora Reformatório - 220 Páginas - Design e editoração eletrônica: Karina Tenório - Ilustrações: Ivan Sitta - Lançamento: 2022.

O mais recente romance de Márcia Barbieri apresenta diferentes vozes narrativas em primeira pessoa, alternando monólogos em um exercício literário que só encontro similaridade nas obras de Samuel Beckett e László Krasznahorkai. Um dos personagens principais, Menino, retorna ao povoado natal dizimado pela varíola do macaco e tem a função de enterrar os corpos, auxiliado por Sombra e Barnabás, apesar de não se definir como um coveiro: "Entre tantos eu fora o nomeado. Era preciso levantar as mãos aos céus e agradecer por isso. Eu preparava os mortos para que se assemelhassem aos vivos. Mesmo não acreditando na inocência dos vivos." Menino é atormentado pela ausência do pai na sua formação e a dificuldade de construir afetos: "Afetos não passam de ilusões do nosso cérebro para suportar a dor da existência."

Na alternância dos personagens, nem sempre clara para o leitor, o protagonismo de Menino é dividido com Donana que cumpre a sina de todas as mães: "As mães são isso, um espichadinho de sombra para corrigir os erros dos filhos. E os filhos se aproveitam para errar à vontade, depois esticam as cabeças e esperam o cafuné no meio das orelhas como cães sadios." Donana  sente que as transformações do corpo decorrentes da maternidade roubaram a sua sexualidade, um tema recorrente nos livros de Márcia Barbieri: "Mal lembrava que tinha um corpo por baixo do vestido. Já não tocava o buraco por onde Menino nascera. Agora seus buracos pareciam vergonhosos e excessivos, como se tivessem sido gerados por puro engano e distração." 

"[...] Não sou coveiro. Não estou aqui à toa, foram eles que me chamaram. Qualquer um poderia me substituir nessa função, no entanto, eles me escolheram e eu estou aqui. Não importa quem são eles, se você soubesse não mudaria nada. Se morrer, será enterrado como todos, abrirei a cova e depositarei o seu cadáver, é uma lógica simples. Mas, isso não é nenhuma novidade, desde que nasceu estão te preparando para a morte. Uma cova se abre a cada passo. ¿Por que isso o assustaria? Desaparecerá sem grande alarde, como um tatu silencioso se movendo por debaixo da terra ou como uma planta que se extingue e continua com as raízes submersas. Quem sabe toque um sino, se alguma vaca estiver pastando pela redondeza. Talvez um ou outro cão durma na sua sepultura. Talvez não. Não procure nada além disso. Não há nenhuma poética na morte. Findamos desde o instante em que o cordão nos abandona. Não há mais onde se segurar. A morte é um fracasso gradativo. O homem se assemelha a uma semente que a terra abocanha e não germina. Uma árvore que dá frutos estéreis. O pensamento não pode livrar o homem da finitude, morrerá e apodrecerá como o mais irracional dos invertebrados. Uma aranha pensante. Esperamos grandes honrarias e nunca as recebemos em vida, contudo, também não as receberemos depois de mortos. Não existe nada nem de um lado nem do outro. Não espere grande coisa. Não passaremos de cadáveres engravatados esperando pacientemente o jantar dos vermes. [...]" (pp. 20-1)

Apesar do romance ter sido concebido com base em uma região independente no tempo e no espaço, há referências claras à recente pandemia e ao processo de isolamento social, um período sombrio da nossa história que mesmo a literatura mais delirante e distópica tem dificuldade em representar, contudo, Márcia se saiu muito bem, como no trecho reproduzido abaixo, no qual os "vira-latas foram abandonados" e houve a necessidade de "economizar covas" devido à alta mortalidade, como bem lembramos dos noticiários da época.

Lembro da citação de António Lobo Antunes: "Saber ler é tão difícil como saber escrever." E, de fato, este é um romance forte que exige atenção redobrada, um desafio tanto na forma quanto no conteúdo. Afinal, por que devemos ler obras assim? Não sei responder a esta pergunta, mas que é um belo trabalho de literatura não tenho dúvidas.

"[...] A disseminação do vírus produzia mais mortos do que vivos. Os velhos viviam reclamando da miséria, mas quando souberam que estavam com os dias contados passaram a fazer promessas e novenas. Algum Deus mexeu os pauzinhos lá em cima, exigia de volta todos os nascimentos que derramou sobre aquele país de indigentes. O jeito era acomodar mais de um defunto no mesmo caixão, era preciso economizar cova. Até mesmo inimigos mortais foram abraçados para o além. Esposas e putas dividiram o mesmo pedaço de madeira. A cidade parecia um cemitério. Os poucos vivos permaneciam confinados em suas casas, não abriam nem para carteiros nem para agentes de saúde. As campanhias foram arrancadas, as janelas lacradas. Os homens de branco eram recebidos a pedradas. Os vendedores de rua se escafederam. Os vira-latas foram abandonados, ninguém queria dividir os ossos. Eu não ousava bater na casa de nenhum vizinho, nunca fui bem quisto, agora então com certeza as coisas se agravariam. Estávamos cercados por monstros invisíveis. Aqui, neste pequeno inferno, ninguém mais se preocupava com os fantasmas. No entanto, os fantasmas são perigosos porque não podem ser vistos e os homens pelo motivo contrário. Aos poucos, os amantes deixaram de se encontrar, em alguns anos a população de recém-nascidos chegaria a zero. Os bêbados se embriagavam trancados em suas casas. Apenas as funerárias mantinham suas atividades, embora quase nada ganhassem com isso. [...]" (pp. 66-7)

Literatura brasileira ocntemporânea
Sobre a autora: Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras (Unesp) e é mestra em Filosofia (Unifesp). Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013), lançado na Alemanha como Mosaik des grolls (Clandestino Publikationen, 2016); A Puta (Terracota, 2014 / Reformatório, 2020), foi contemplado com uma bolsa de tradução pela PEN AMERICA, lançado pela Sublunary editions em 2023 com o título The Whore; O enterro do lobo branco (Patuá, 2017 / Reformatório, 2021), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e A casa das aranhas (Reformatório, 2019, finalista do Prêmio Guarulhos e semifinalista do Prêmio Oceanos.

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