Mário Baggio - Vozes para tímpanos mortos

Literatura brasileira contemporânea
Mário Baggio - Vozes para tímpanos mortos - Editora Litteralux - 160 Páginas - Capa e diagramação: Karina Tenório - Lançamento: 2025.

Mário Baggio segue fiel ao seu estilo de narrativas concisas que normalmente se resolvem em dois ou três parágrafos, suficientes para introduzir o tema, desenvolver a ideia e surpreender o leitor com desfechos inesperados. Nesta nova coletânea, seus contos funcionam como reflexões sobre uma sociedade que insiste em ignorar os sinais cotidianos de desajuste — pequenos ruídos que, por negligência, convertem-se em tragédias silenciosas. O próprio autor adverte, em sua apresentação: "Há os gritos explícitos, estridentes, sonoros, mas, na grande maioria dos casos, eles são silenciosos, calados. Vêm à tona não por meio de sons e palavras, mas por gestos, por escolhas, por decisões intempestivas e até por inércia".

Nesta coletânea, os contos estão agrupados em três partes. Na primeira seção, Baggio explora os dilemas do envelhecer e a fragilidade da memória. Por exemplo, em "Era uma vez um plano" um casal de idosos precisa lidar com essas duas questões e encontrar uma solução para a lenta desintegração da existência. Já o emocionante "Vô", retrata o esforço de um neto em ajudar o avô a nomear as coisas, como forma de resistir à deterioração da memória — um conto marcado pela ternura e pela empatia.  No ótimo "Os arautos", uma dose de realismo fantástico, sempre presente em algumas narrativas do autor, conduz o desenvolvimento da trama com um final de tirar o fôlego.

O segundo conjunto, trata de um assunto atual, os diferentes aspectos do imigrante na sua difícil adaptação em terras estrangeiras. Em "Andar, andar" e "Sul", também na linha do realismo mágico, uma visão sombria do exílio forçado. Já em "A chuva morna" e "Não me maltrate Robinson!", o tema é abordado com leveza e humor, revelando a versatilidade narrativa do autor. “O pior que podia fazer” evidencia os perigos do preconceito e da discriminação, especialmente quando perpetuados por autoridades — uma crítica atual que constatamos no noticiário cotidiano.

Na terceira e última parte são apresentados alguns temas comuns ao cotidiano dos grandes centros urbanos. Em "No labirinto da besta", a contínua opressão dos meios de produção à classe trabalhadora. A solidão dos personagens fica flagrante nos contos "Conversa com café", "Sábado" e "Meu amigo Marcos". Como não poderia deixar de ser a violência nos bairros da periferia e mesmo nas cidades pequenas está presente em "Quinze luas" e "Continuam nos matando". Com domínio seguro da técnica da narrativa curta, Mário Baggio nos apresenta uma coletânea potente, sensível e provocadora — um livro recomendado para quem acompanha a literatura contemporânea.  

O som da memória
Um conto de Mário Baggio

     Trinta anos depois de sua morte, a recordação mais poderosa que tenho de meu pai permanece a mesma. Não está impressa numa fotografia. Não é a de quando ele me ensinou a andar a cavalo nem quando me deu a surra de cinta por ter me esquecido de desligar o bico do gás. Nem a do dia em que ele me deu os primeiros trocados para ir ao baile de Carnaval no clube. Nem seu porte e andar de urso ou seus inquiridores olhos azuis. Nada disso dá contorno e nitidez à maneira como me recordo dele.

     A lembrança mais forte me vem à cabeça por outro caminho, tão inusitado quanto um cheiro e igualmente sem explicação razoável. Vem por um som: o ruído que ele fazia quando urinava — o jorro farto, de bexiga inchada e urgente, que saía primeiro como o estouro de uma bomba, batendo na água parada do vaso sanitário e que, depois de muitos e longos segundos, se convertia numa queda interminável de cascata que ia diminuindo, diminuindo, até secar por completo. Era assim que eu, menino, do outro lado da porta trancada do banheiro, imaginava que fosse o ato de urinar de meu pai. O barulho extraordinário que vinha lá de dentro nunca mais abandonou minha memória.

     Talvez fosse porque conversávamos pouco, mas nunca entendi por que meu pai, que passava o dia inteiro cuidando da plantação de café, não urinava na solidão do campo, atrás de algum arbusto, preferindo segurar a vontade de se aliviar até voltar para casa, no fim do dia.

     Eu sabia do orgulho que ele havia sentido quando ganhou um dinheiro extra e transformou a "casinha" de dois por dois que tínhamos no quintal num banheiro "de cidade", agora instalado ao lado da cozinha, para conforto de toda a família. Aquele sim, era um banheiro igual ao que havia na casa dos que moravam nas ruas asfaltadas do povoado, ]'aquela gente remediada que aprendeu a usar garfo, faca e guardanapo."

     Agora que volto à velha casa para entregá-la ao novo proprietário, veio-me à cabeça essa recordação tão ancestral e ainda tão impactante. O barulho que meu pai fazia ao urinar, no banheiro "de cidade" que passamos a ter em casa, é a tradução de uma conquista que arde em meus ouvidos. É como se ele preferisse não gozar lá, no meio da plantação, mas sim guardar o seu prazer para usufruir do barulho de sua cascata se chocando com a água parada do vaso sanitário. Era sinal de vida em evolução e progresso. Com esse pequeno privilégio, me pai se sentia um homem vitorioso. O som do jorro de sua urina é a lembrança que não me faz esquecer dele.

O pior que podia fazer
Um conto de Mário Baggio

     O pior que pôde fazer o imigrante foi oferecer resistência à autoridade. Claro, era normal que ele estivesse alterado, pois fora denunciado por abuso sexual pela senhora que morava na parte rica da cidade. Ele passava sempre por ali, voltando para sua casa, e, naquele dia, estava especialmente angustiado por receber mais uma maldita resposta negativa de trabalho. Nunca se metia com ninguém, cônscio de sua condição de estrangeiro, e, sabia que estaria sempre melhor quanto mais se mantivesse longe de problemas. Que tinha mulher e filhos e estava buscando trabalho para sustentá-los.

     Era isso que ele devia dizer ao policial que o prendera na rua, antes que lhe pusesse as algemas. Antes que o levassem para a delegacia para tomar seu depoimento. antes que lhe dessem uma surra por abusar de senhoras de respeito. Antes que o jogassem numa cela, à espera de julgamento. Antes que, no dia seguinte, a senhora retirasse a queixa contra ele, dizendo com um sorriso amarelo que não tinha certeza de que aquele sujeito a havia molestado. Antes que ninguém lhe pedisse desculpas pelo engano e o pusesse de novo nas ruas.

     Teria sido muito melhor se o imigrante conservasse sua calma e serenidade no momento em que fora detido. E não insultasse todo mundo, inclusive o delegado. E não enfrentasse a força da autoridade. E não tentasse fugir de modo intempestivo. E não caísse de bruços depois de receber um tiro pelas costas. "Foi de avertência", justificou-se o policial.

Quinze luas
Um conto de Mário Baggio

     Quando um menino do nosso bairro morria, de doença, de fome, de desabamento de terra, de inundação ou de bala perdida, a gente pegava os tênis que ele usava, amarrava os cadarços e jogava nos fios de eletricidade. Ficavam lá pendurados, pra lembrar que um dia tiveram dono. Era um ritual. Foi assim com o Marquinhos.

     Logo depois do velório, fomos até a casa em que ele morava. Dona Santinha já esperava a gente. Entregou os tênis numa caixa e falou que tavam limpinhos, tinha esfregado com detergente, o Marquinhos nunca lavou porque só tinha aquele par. Fizemos sorteio e a responsabilidade caiu pra mim. Atirei os tênis pra cima e nós todos vimos quando os cadarços se enrolaram no fio de luz.

     Na noite em que fui embora do bairro, contei quinze pares de tênis pendurados. Pareciam quinze luas. Fiz minha mãe e minha irmã jurarem que, quando eu morresse, elas fariam a mesma coisa com o meu par de tênis. Nunca gostei de números ímpares.

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Mário Baggio é jornalista e escritor. Nasceu em Ribeirão Claro-PR. Mora em São Paulo-SP desde os anos 70. Tem 6 livros de contos publicados: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe (2017), “Espantos para uso diário” (2019), “Verás que tudo é mentira” (2020), “Antes de cair o pano” (2022) e “A vida é uma palavra muito curta” (2024). Publicou contos em várias revistas online (Germina, Gueto, Ruído Manifesto, Subversa, entre outras). Escreve semanalmente para a revista Crônicas Cariocas. Participou da “Antologia Ruínas” (2020), “Tanto mar entre nós: diásporas” (2021), “Brevemente Infinito” (2024) e Antologia de Contos da UBE - União Brasileira de Escritores (2021 e 2023).

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