Lourenço Dutra - A Guerra dos Gêneros

Literatura brasileira
Lourenço Dutra - A Guerra dos Gêneros - 106 Páginas - Editora Penalux - Lançamento: 2018.

O brasiliense Lourenço Dutra nos apresenta, nesta sua mais recente antologia de contos, uma reflexão sobre algumas questões contemporâneas muito próximas do nosso cotidiano, provocadas pela convivência constante nas redes sociais e utilização indiscriminada dos demais aplicativos e dispositivos digitais. Qual será o efeito deste comportamento compulsivo nas relações humanas em um longo prazo?

O fato é que hoje existimos em um ambiente virtual no qual o exercício da individualidade é cada vez mais presente e a polarização ideológica se transforma facilmente em  fanatismo, seja no campo político ou religioso. Neste contexto, o patrulhamento sobre o que pode ser considerado politicamente correto ou incorreto e a enxurrada de informações irrelevantes, sejam elas falsas ou verdadeiras, ocupa o lugar da própria formação dos indivíduos. Justamente o vácuo entre formação e informação é o que parece inspirar os contos desta antologia que chegam em um momento muito oportuno, provando que a literatura é tão somente um espelho da sociedade e, se a imagem refletida não é agradável, a culpa certamente não é do espelho, mas sim da sociedade.
 
Em "Ortodoxia", o conto de abertura do livro, encontramos uma narrativa veloz, totalmente desenvolvida em forma de diálogo, e que nos dá uma pista dos assuntos polêmicos que o autor pretende utilizar como matéria-prima, normalmente de forma bem-humorada. Aqui, os preconceitos de homofobia e religião levam a um debate muito semelhante ao que presenciamos no campo de comentários de muitas postagens do Facebook.

(Trecho de "Ortodoxia" - Págs. 13 e 14)

     — Daí o deputado veio até nós, ali, na frente do Congresso e falou: "Fiquem tranquilos que eu vou botar quente nesses veadinhos, nessas bichinhas saltitantes. Que casamento gay que nada!" — e daí deu uma banana. Que figura! Amo esse cara!
     O outro ouvia em silêncio, olhos arregalados, boca entreaberta. Não resistiu.
     — O que você ama nesse cara?
     — Ah... a sinceridade, ser contra esses veados que ficam se lambendo, passeando por aí de mãos dadas, um comendo a bunda do outro.
     — E quando eles se comem você sente alguma coisa? Uma coçadinha, uma comichão, uma ardência, uma dorzinha gostosa?
     — O que?
     — Senta de ladinho por uns dois dias? Diz aí...
     — Que papo é esse?
     — Calma. Tô querendo entender, afinal, a bunda é dele, tua, ou dos outros?
     — Que é isso, que papo é esse?
     — Sério, não entendo! Se um come o outro ou dá pro outro o que você tem com isso?
     — Tudo! A Bíblia diz...
     — Bíblia?
     — É, a Bíblia!
     — Tá, então onde tá escrito isso?
     — "Deus criou o sexo para ser feito apenas entre um homem e uma mulher e apenas se forem casados." (Gênesis, 1:27, Levítico, 18:22, Provérbios, 5:18-19)
     — Uau, você sabe! E o que mais?
     — "Não seja controlado pelo seu corpo. Mate qualquer tipo errado de sexo." (Colossenses, 3:5)
     — Tipo errado de sexo?
     — Isso, tipo errado de sexo.
     — Quer dizer que existe o certo?
     — Claro que existe!
     — E qual é?
     — Dentro do matrimônio e praticado com a sua esposa.
     — E quem não é casado?
     — Não pode. Só depois do matrimônio.
     — Rapaz, isso nem medieval é. Isso é pré-histórico.
     — Preconceito seu.
     — Meu? Tá louco?
     — Preconceito sim!

Já em "Selfie", uma babá divide a sua atenção entre tomar conta do bebê, que engatinha livre pela casa, e o uso compulsivo do celular. Esta narrativa passa por uma conclusão óbvia que deveria ser a proibição do uso do celular no exercício de atividades profissionais, principalmente aquelas em que a desatenção, mesmo que momentânea, possa levar à tragédia. O conto vai evoluindo com situações cada vez mais próximas de um acidente doméstico, principalmente quando o bebê consegue sair da casa. O leitor, angustiado, não consegue interromper a leitura em um suspense crescente. Será que esse bebê vai ter um final feliz?

(Trecho de "Selfie" - Págs. 75 e 76)

Ela está no telefone enquanto o menino engatinha. 
      Ela ri, digita, posa, clica e posta fotos. Muitas fotos. Uma tirada atrás da outra e o menino mexendo no cinzeiro. Ela faz biquinho e o menino pega e cheira o filtro apagado de um cigarro. Ela empina a bunda e faz beicinho. Tira uma, duas, três fotos próprias com a mão direita esticada. Ele leva o filtro do cigarro à boca e chupa com vontade infantil. Chupa o desconhecido como se fosse uma mamadeira ou mini-chupeta. Faz careta e baba. Baba porque não sabe cuspir. Baba pelos cantos da boca numa pequena cascata de rejeição. Ela liga o rádio e aumenta o som. Sempre ao celular como se sua vida dependesse desse aparelho. Agora alterna grito e sussurro. Ora um, ora outro pelo volume do rádio e pelo interlocutor. Vozinha dengosa, charme, outro bebê,
     "Cê quisabe môôôzim. Faço do jeitim quicêquisé!"
     Bebê rumo à cozinha. Engatinha. Levanta-se. Equilibra-se. Em pé perde o equilíbrio e derruba o cesto de lixo. Ela vai até a cozinha, recolhe o lixo esparramado com uma luva, ensaca-o e dá um nó. Tamborila na porta da geladeira e olha o menino por breves segundos.
       "Bebê, ocê fica aí bem bonitinho e quietinho, viu?!"
     Ela volta para a sala e esquece do bebê. Mais selfies, sussurros, bunda empinada, beicinhos. A criança mexe na tomada da geladeira. Tenta tirar o rabicho fora, mas não tem força. Desiste. Avista a fruteira em cima de uma mesa baixa. Escora-se numa cadeira, estica o bracinho, puxa e derruba a fruteira no chão. Senta, pega uma manga e aperta com as duas mãos pequeninas. Espada, verde ainda. Solta a manga e parte para a banana. Nanica, madura demais. Aperta entre as duas mãozinhas e a fruta se espalha entre os dedos, também na roupa, caindo um naco no chão. Ele lambe os dedos. Abaixa e pega com a boca o naco do piso. (...)

O conto "Apenas um leitor sensível" poderia representar um mero exercício de ficção do autor mas, na verdade, já é uma prática comum utilizada em editoras no exterior e, talvez, até mesmo no Brasil, contratar os serviços de consultoria de um "leitor sensível" para antecipar certas colocações politicamente incorretas e evitar futuros processos judiciais decorrentes da publicação, vindos de minorias pretensamente discriminadas. Afinal, qual a diferença deste procedimento para a censura? O autor que não é livre para criar e limita-se ao que é convencionado como politicamente correto poderá fazer a verdadeira literatura?

(Trecho de "Apenas um Leitor Sensível" - Págs. 83 e 84)

     — Bom dia, Iuri, seja bem-vindo! Este aqui é o nosso autor, o José Mourinho e Souza.
     Autor e leitor se cumprimentam mecanicamente.
     — Sente-se, sente-se meu rapaz! E então, o que nos diz do original?
     — Bem, ele é muito bom, bom mesmo! A relação incestuosa entre mãe e filho sempre choca um pouco, mas a trama é muito bem urdida.
     — E o que mais tem a nos dizer?
     — Bem, eu suprimiria algumas partes ou modificaria alguns termos utilizados. Eu até os marquei aqui. — e retira do bolso um bloquinho de anotações. Localiza-se e procura a página grifada na cópia espiralada. — Bem... Na página 56, Marilda a personagem principal chama em meio a uma discussão, Maria das Dores, sua empregada de uma "filha da puta duma negrinha ingrata." Há aí um preconceito racial, social e uma discriminação às putas. Não se deve mais usar esse termo "filho da puta."
     O autor se remexe na cadeira e pede a palavra.
     — Olha... o filha da puta aí quer dizer sacana, maldosa, uma pessoa que apesar de tudo o que foi feito durante anos ainda é uma ingrata.
     — Eu suprimiria tudo. Filho da puta é filho da puta!

O conto que empresta o título a esta antologia, "A Guerra dos Gêneros", aborda a antiga questão do machismo e feminismo, ainda tão mal resolvida em nossa sociedade. Em uma divertida conversa entre marido e mulher, Lourenço Dutra demonstra, por meio das colocações do marido, a sutileza (nem tão sutil assim) da influência do pagamento das contas de luz e gás na vida em comum do casal.

(Trecho de "A Guerra dos Gêneros" - Pág. 97)

     — Quer ver um tema importante? Vou te mostrar um tema importante. Vou pegar a minha carteira. Olha só, viu, conta de água e luz. Duzentos e cinquenta reais de luz e oitenta de água. Olha aí um tema importante. Tema, aliás, sobre o qual nunca te cobrei nada!
     — Mas tá cobrando agora.
     — Estou te mostrando o mundo real. O mundo além das discussões acadêmicas. Quem trabalha sou eu e você só estuda. Faz o seu mestrado e adianta algumas matérias do doutorado. Fizemos um pacto. Eu trabalho e você estuda. Só que me parece, você não valoriza isso.
     — E que tipo de valorização seria essa?
     — Paz, eu só queria ter paz! Chegar em casa e ter paz! Poder assistir a um filme, ler um livro, escutar uma musiquinha. Ah, e uma comidinha quente vez ou outra, um carinho, um aconchego, uma trepadinha gostosa...
     — Comidinha quente? Trepadinha gostosa? Tá achando que eu sou o quê? Uma mucama seviciada pelo dono? Uma empregada doméstica explorada em seus direitos?

Informações sobre o autor
Sobre o autor: Lourenço Dutra nasceu em Brasília no dia 21 de dezembro de 1963, filho de pais que vieram tentar a sorte na então nova capital brasileira. É professor graduado em História e Jornalismo e escreve com muita regularidade, apesar de ainda não ser um nome conhecido do grande público. Dentre suas publicações estão os livros de contos: O destino de um certo Frank Zappa (ARTEPAUBRASIL, 2009), Cerrados, frevos e minuanos (LER Editora, 2012); seus romances: Berlin Discos (LGE Editora, 2011), Diário de um limpador de janelas (Ler Editora, 2015) e Os Aliciadores (Pulp Bsb Edições, 2016).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

20 grandes escritoras brasileiras

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa