Maurício Melo Júnior - Noites Simultâneas

Literatura brasileira contemporânea
Maurício Melo Júnior - Noites Simultâneas - Editora Bagaço - 176 Páginas - Lançamento: 2017.

Um romance oportuno neste momento tão peculiar da história recente brasileira, no qual uma parcela da sociedade levanta dúvidas sobre a veracidade dos fatos ligados ao sistema de governo do país entre 1964 e 1985, período que se convencionou chamar de ditadura militar, marcado pela cassação dos direitos constitucionais, censura aos meios de comunicação, perseguições políticas, e o combate violento aos opositores do regime por meio de tortura e morte. Por mais que o passado seja incômodo ou doloroso, não será esquecendo ou distorcendo a sua própria história, que um povo se consolidará como nação para exercer o pleno direito democrático e a construção de um futuro melhor.

Em Noites Simultâneas, o escritor, jornalista e crítico literário Maurício Melo Júnior nos leva a conhecer esta época sombria, não com o rigor científico de historiador, mas por meio do seu olhar humano de ficcionista, contando uma entre muitas outras histórias possíveis de um protagonista que representa uma geração que esperou mais de vinte anos para recuperar o direito de voto. Filho de proprietários rurais, ainda jovem e estudante de medicina, o moço que, no início, é "um velho com planos e nenhum sonho", é influenciado pela namorada e entra para uma organização clandestina contra a ditadura. Quando a organização é desmontada em todo o país pelos agentes da repressão, o casal toma rumos diferentes, ele defende a ação pela luta armada no campo como uma opção para obter a justiça social e ela segue a orientação da direção, um recuo estratégico que a levará a passar muitos anos no exílio.

Uma característica do processo narrativo é que todos os personagens não são nomeados, assim como os locais e a época onde se desenvolve a trama do romance também não são explicitados claramente. Assim, o personagem principal é chamado de moço e, no decorrer da narrativa, vai mudando de designação conforme as atividades e funções que assume no romance: prisioneiro, fugitivo, escriturário, bancário e assim por diante. A ausência de nomes, os longos períodos de confinamento, assim como a imprecisão de localização no tempo e espaço – apenas algumas poucas referências eventuais para situar o leitor – criam uma sensação claustrofóbica e induzem a percepção da clandestinidade vivenciada por essas pessoas.

O protagonista cria uma célula guerrilheira independente, composta de cinco elementos: "o moço (ele próprio), uma estudante de engenharia, um estivador, o filho de um ferroviário e um militar que desertou". É claro que este grupo limitado não tem a menor chance de sucesso. A compra de armas para as futuras operações é financiada por um assalto a banco, mas eles acabam sendo descobertos e tem início o longo período na prisão, um lugar em que "o pensamento atrofia e as lembranças morrem", onde "esgota-se o repertório das saudades". A bela passagem abaixo me faz lembrar do caráter essencial da narrativa, da palavra exata que "não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso" como nos ensinou o velho Graciliano Ramos.
"Os dias passam monotonamente; horas estendidas, desesperançadas. Preso pelo medo, o fedor o horror, recorre à memória, poemas decorados, passagens da vida, qualquer coisa que apresse o tempo, mas o pensamento atrofia, as lembranças morrem, esgota-se o repertório das saudades. Busca os companheiros, puxa conversa, mas já ninguém tem novidades para contar, e as lições da ideologia também envelhecem, não despertam interesse, tudo se esmaga, escorrem a dignidade, a esperança, o ideal, a vida, o passado, o presente. [...] O silêncio que atormenta é real, a espera deprime, os dias nascem como espelho do dia anterior, a fedentina, a luz mortiça, o calor, os companheiros mudos, tudo idêntico; fala sozinho, para si mesmo, canta, recita, qualquer coisa que denuncie uma existência, esforços inúteis, bate o caneco metálico – seu único bem – no chão, mas nada quebra o silêncio, nem mesmo o relato dos encarcerados que voltam dos interrogatórios; falam de torturas, de delações, de quedas, de brutalidades, de heroísmos e resistências, mas nada rompe o silêncio. Os livros entram clandestinos na cela; são memórias de resistência, tratados políticos, libelos econômicos, relatos históricos. Quase sempre no final da tarde formam círculos onde discutem as leituras. Há conflitos, debates, esclarecimentos, controvérsias, mas tudo o que chega aos ouvidos do prisioneiro é o inquebrantável silêncio." (p. 78)
A narrativa em terceira pessoa é enriquecida com inserções em primeira pessoa, uma técnica bem conduzida pelo autor que permite acompanhar de perto as reflexões em retrospectiva do protagonista, a lenta corrosão de seus ideais pelo medo decorrente das torturas que sofreu na prisão. Por sinal, no trecho abaixo, temos um "desabafo" de um elemento da repressão que não reconhece os choques, afogamentos e queimaduras como atos de tortura, mas simplesmente como "métodos de interrogatório" que visam "garantir nossas conquistas e desenvolvimentos". O que assusta é constatar como este discurso ainda existe hoje, justificando atos de crueldade e violência em função da defesa contra pretensas ações comunistas, mesmo depois de trinta anos da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética.
"Olhe que estudei, fui bom aluno minha vida inteira, só não cheguei a me formar porque tive que enfrentar o batente, sustentar mulher e filhos, mesmo assim não consigo entender vocês, os comunistas, vivem no melhor dos países, onde se tem de um tudo e não há quem passe fome; um governo democrático, justo, progressista, acolhedor, veja aí os estrangeiros que a gente recebe sem nenhum problema, mesmo assim vocês reclamam, falam em tortura, uma mentira deslavada, nós aqui usamos métodos de interrogatório, estamos em guerra, precisamos reagir para garantir nossas conquistas, o desenvolvimento, a liberdade, se deixar tudo no frouxo, tomam até nossas mulheres, nossas filhas, nossas riquezas, nossas matas, nossos minérios, só por isso levamos vocês no controle, fora disso cada um faz o que bem quer, e vocês, os comunistas, ainda reclamam, gritam, fazem greve, uma anarquia, por isso tomamos o pulso da resistência, para preservar nossa felicidade dos interesses estrangeiros que vocês defendem, um país gigante não pode se curvar diante de uma gente menor, vocês precisam entender que só agimos na defesa do nosso país e da nossa gente." (pp. 91 e 92).
Sobre o autor: Maurício Melo Júnior é pernambucano de Catende. Escritor, jornalista, crítico literário e documentarista. Trabalhou no jornal Correio Braziliense. Atuou em assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados, Senado Federal e Ministério da Justiça. Foi professor no Centro de Ensino Universitário de Brasília - CEUB e chefe de telejornalismo da Radiobrás. Escreveu resenhas literárias para o Jornal do Brasil (RJ) e Zero Hora (RS). Escreveu e publicou mais de vinte livros infantojuvenis, além de um volume de novelas, Andarilhos, e um outro de crônicas. Tem contos publicados em várias antologias e escreveu para o teatro as peças Volta à Seca e Depois da Guerra. Participou de diversos eventos literários e foi júri em concursos literários. É jornalista da TV Senado, onde dirigiu e apresentou o programa Leituras, dedicado à literatura brasileira. Escreve resenhas literárias para o jornal Rascunho (Curitiba/PR) e crônicas semanais para o blog Jornal da Besta Fubana (Recife-PE).

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