Luiz Eduardo de Carvalho - Xadrez

Literatura brasileira contemporânea
Luiz Eduardo de Carvalho - Xadrez - Editora Patuá - 200 Páginas
Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação de Leonardo Mathias - Lançamento: 2019

O xadrez está longe de ser apenas um jogo. A estratégia e a pressão psicológica envolvida nas partidas reproduzem certas reações humanas de forma muito similar às situações que enfrentamos em nosso cotidiano, algo parecido com os textos de ficção na literatura. Luiz Eduardo de Carvalho conseguiu um feito inédito com este livro ao colocar o xadrez como elemento central da narrativa e não apenas uma  referência secundária. Recorrendo ao clássico estilo de romance epistolar, o autor aborda duas atividades consideradas hoje como anacrônicas: escrever cartas e jogar xadrez por correspondência, para contar a história de dois homens que, cada um a seu modo, perderam toda esperança em um possível futuro.

Apesar do conhecimento sobre xadrez não ser um pré-requisito obrigatório para a leitura e compreensão do romance, os iniciados no "jogo dos reis", como é conhecido, certamente aproveitarão mais a experiência porque a partida pode ser acompanhada em detalhes (um lance por capítulo), assim como o estilo e a estratégia de jogo demonstram analogias com o perfil psicológico dos personagens. Os dois enxadristas, Joel Russo e Emanuel Torres, estabelecem contato por iniciativa de uma carta de Emanuel e iniciam a partida que irá se estender por seis anos, de 1977 a 1983, período coincidente com o final dos governos militares que se alternaram no Brasil desde 1964 e o início da transição para a abertura política.

O carioca Joel é um presidiário que cumpre pena perpétua em Fortaleza pelo duplo assassinato da esposa e amante. Em sua própria definição, ele é: "um sujeito prático, objetivo e resoluto", ou ainda: "um homem de ação e não de crendices e divagações". Na época em que o jogo tem início está conformado com o destino que só tem a lhe oferecer a repetição dos mesmos dias e o difícil exercício de sobrevivência na prisão, ou seja, já não espera por nada. Seu estilo de jogo é arrojado e pouco convencional, trabalha muito bem com o avanço dos peões. No trecho abaixo um trecho da carta em que se apresenta para Emanuel e aceita o desafio.  
"Ah sim, tenho trinta e quatro anos, nasci no Brasil e encontro-me na detenção em Fortaleza, cumprindo pena perpétua por duplo homicídio qualificado. Matei meu ex-sócio e minha ex-esposa quando ainda eram meu sócio e minha esposa! Explodi os dois na lancha dele, enquanto me traíam sobre parte da fortuna que ele desviava e roubava de mim! Não tenho remorso, apenas raiva de ter sido descoberto! Já estou na gaiola há oito anos, agora só falta o resto da vida, assim, no que depender de mim, não precisa ter pressa em responder a jogada, pois por aqui não há ansiedade. Não espero por nada!" - Trecho da carta de Joel Russo de 14/11/1977 (p. 9)
Já o solitário Emanuel, sessenta e três anos, exilado português que acaba de se estabelecer em São Paulo, depois da morte da esposa e filha, também se considera um prisioneiro de sua idade avançada e diversas enfermidades do corpo e do espírito. Politicamente é um extremista de direita e, por este motivo, abandonou o país natal depois da Revolução dos Cravos em 1974. Tem verdadeiro pavor a qualquer orientação política de caráter mais liberal, que sempre atribui à influência da União Soviética, potência política e militar na época, e o avanço das forças comunistas. Seu estilo no xadrez é sólido e clássico. Utiliza a linha de torres como defesa, mas se surpreenderá com a criatividade e poder de fogo do seu jovem oponente.
"Antes de darmos continuidade ao jogo, gostaria de expressar meu sincero lamento pela tua situação, mas, saibas, também eu sou presa de duplo cárcere forçado. Em primeiro lugar, por não poder retornar à minha pátria com a esperança de reaver meus negócios desde que a revolução comunista exilou-me. Não bastasse, a gota mantém-me preso a uma cama com dores atrozes que mal sei expressar. Vivo metido em camisolas e pantufas a dar ordens aos subalternos, muitas vezes por debaixo dos lençóis. Fossem subalternas, como no passado, e o colchão seria mesmo o local mais apropriado a dar-lhes ordens, contudo de que valem estas meninas despreparadas que sequer se prestam a tirar cria, igualmente incompetentes na profissão e nos afagos, se me permite a intolerância no desabafo!" - Trecho de carta de Emanuel Torres de 27/11/1977 (p. 10)
Com a continuidade das cartas, as confidências trocadas de ambas as partes propiciam o fortalecimento de uma amizade desinteressada entre os enxadristas que logo passam a debater os eventos históricos e políticos no Brasil e no mundo, incluindo a morte do Papa Paulo VI e seu sucessor João Paulo I, assim como de outras personalidades (Elvis Presley, Charlie Chaplin, Bob Marley, John Lennon e Vinicius de Moraes), lançamento de filmes (Guerra nas Estrelas, Contatos Imediatos do Terceiro GrauÚltimo Tango em Paris - liberado no Brasil em 1979, Calígula e ET) e de livros que marcaram os anos setenta e oitenta (O Navegante de Morris West, O Nome da Rosa de Umberto Eco, CosmosOs Dragões do Éden de Carl Sagan, A Grande Arte de Rubem Fonseca e A Erva do Diabo de Carlo Castaneda).
"Sinceramente, os avanços da ciência não me causam nenhum assombro. Depois que pisamos na lua, qualquer coisa será possível e as ficções serão realidade mais cedo do que imaginamos. Mas arrepiou-me sim a sua intuição, quando vi a notícia da morte do Papa Paulo VI no dia da festa da Transfiguração! Você vaticinou isso em uma carta anterior e o anúncio da proximidade do anticristo agora faz mais sentido ainda. Confesso um arrepio macabro nas costas! Se o mundo acabar mesmo em 1996, como disse Nostradamus (peguei um livro a respeito dele na escassa biblioteca do presídio), ainda terei dezoito anos de prisão pela frente, porém assim, só de birra, não cumpro minha pena até o fim: o mundo acaba antes! Avanço meu peão contra o apocalipse em b4."Trecho da carta de Joel Russo de 08/08/1978 (p. 34)
Emanuel Torres escreve poemas sobre a passagem do tempo e a saudade de quando era criança, mas desdenha dos governos em Portugal após a Revolução dos Cravos, continua fiel à ditadura de Salazar e ao partido da União Nacional, também é cético em relação aos primeiros movimentos do Partido dos Trabalhadores no ABC paulista, considerando que o regime militar no Brasil "garante o ancoramento do país em seus ideais progressistas e cristãos". Não deixa de ser irônico o autor imaginar esta fala em um personagem no ano de 1978, sabendo que a ideia será ressuscitada em nossa atualidade, ou será que o personagem tem alguma razão quando diz que "o poder nunca declina, apenas muda de mãos."?
"Hoje durmo a acalentar um pequeno alívio no espírito. O rato do Soares deixa o cargo de primeiro-ministro de Portugal. Assume o Alfredo Nobre da Costa. Veremos o que esse tal terceiro governo constitucional nos reserva. Terceiro é conta para asnos, pois até o instante atual, desde que tomaram o poder, foi apenas o Soares quem mandou e desmandou por lá. O Papa também é novo, João Paulo Primeiro. Pareceu-me muito frágil para comandar a Sé. É como já te disse outrora: o poder nunca declina, apenas muda de mãos. / Não guarda surpresa meu movimento; preservo meu cavalo em a4. A marcha desses teus peões é infernal. Começo, entretanto, a ver mais claro o traçado de teu jogo desde agora."Trecho de carta de Emanuel Torres de 28/08/1978 (p. 36)
Com o desenvolvimento da correspondência, forma-se uma espécie de clube de leitura entre os dois jogadores que excede apenas as publicações recentes de livros, tornando-se uma espécie de educação literária do jovem presidiário, organizada e patrocinada por Emanuel que lhe apresenta algumas das obras clássicas mais importantes da literatura, tais como: O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, Poemas de Fernando Pessoa, Sidarta de Hermann Hesse, A Montanha Mágica de Thomas Mann, O Aleph de Jorge Luis Borges, O Jogo da Amarelinha de Julio Cortázar, Os cus de Judas de António Lobo Antunes, Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez entre muitos outros, até chegar ao nosso definitivo Guimarães Rosa.
"'O Velho e o Mar' dispensa comentários. É obra genial que não pode causar-nos senão reflexões profundas a respeito das convicções. Ainda não materializei as demais plumas do cocar de meus desejos, mas tenho treinado e a tenacidade do pescador Santiago serviu-me, como previsto, de reforço! Devolvo, enfim, 'O Homem e seus Símbolos', obra com tantos conceitos que mal sei quais aprofundar! Mas o da sincronicidade é mesmo fascinante. Imagine só, a excitação dos arquétipos! O que significa exatamente isso? Posso intuir, mas não manejar com os pensamentos recém-inoculados por esses novos e fascinantes conceitos. Resta o reconhecimento absoluto sem o entendimento completo, pois ele fala realmente do que somos feitos e de como somos feitos. Que mente genial!" Trecho da carta de Joel Russo de 29/06/1980 (p. 106)
A relação entre os personagens-jogadores vai se aprofundando enquanto eles escrevem cartas cada vez mais íntimas e confessionais. Ambos estão condenados pela vida em situação semelhante, submetidos à perda da liberdade, seja pela prisão ou pela doença. No entanto, nem tudo está perdido, as coisas parecem melhorar para Emanuel quando ele inicia um improvável relacionamento amoroso com a enfermeira e passa a relatar os seus apimentados jogos eróticos, inspirados nas perversões do romance francês A História de Ó de Pauline Réage. Apesar desse comportamento liberal, nada consegue alterar a linha de pensamento direitista do velho português (como no trecho abaixo). O autor manipula com inteligência esses conflitos internos, concedendo dessa forma veracidade ao personagem.
"Encaminho uma coletânea de poemas de Vinícius de Moraes, que nos deixou a caminho de seu Parnaso ao encalço de Sartre e Hitchcock. Há um poema denominado 'O Operário em Construção' que gosto deveras, pois expõe o lado do proletariado, aliando-o aos princípios cristãos, a provar possível, em tese, um socialismo democrático, cuja consciência brota dos verdadeiros conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade. Não há porque exceder estes cânones já apontados pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo! Caso queiras, envio-te o volume que trata especificamente do fenômeno da sincronicidade, mas adianto que se revela mais um estudo estatístico de ocorrência dos fatos significativos do que propriamente uma explanação mais aprofundada do mecanismo funcional ou ontológico do fenômeno." - Trecho de carta de Emanuel Torres de 20/07/1980 (p. 107)
Durante o longo período em que a partida é disputada, vai sendo estabelecida uma forte amizade e relação de confiança entre Joel Russo e Emanuel Torres, contudo, o final do livro guarda uma grande surpresa para o leitor que, obviamente, não quero e não posso revelar. Confesso que este foi o primeiro romance que li acompanhando com ansiedade os movimentos ao lado de um tabuleiro! O jogo foi disputado, na realidade, entre Viswanathan Anand e Veselin Topalov em 2005. Não deixem de ler, diversão garantida para iniciados ou não no xadrez.

Literatura contemporânea brasileira
Sobre o autor: Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM. Foi professor, teatrólogo, jornalista, publicitário, assessor político. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à Literatura e já recebeu diversos prêmios, entre eles o Oliveira Silveira e o de Incentivo à Publicação, ambos do Ministério da Cultura. Publicou também O Teatro Delirante (2014 - poesia erótica e lírica), Retalhos de Sampa (2015 - poesia), ambos pela Editora Giostri e Sessenta e Seis Elos (2016 - romance) pela Fundação Palmares MinC.

Comentários

sonia disse…
Que ideia brilhante! Usar o jogo de xadrez para fazer um paralelo com o jogo da vida. Mesmo não sabendo jogar eu fiquei atiçada por ler esse livro!

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