Cida Pedrosa - Solo para vialejo

Poesia brasileira contemporânea
Cida Pedrosa - Solo para vialejo - Cepe Editora - 125 Páginas - Projeto gráfico e capa de Luiz Arrais - Lançamento: 17/10/2019.

Cida Pedrosa inventou um jeito diferente de falar do Brasil – e, por que não, dela mesma – a partir de um longo e ambicioso poema que começa em uma época na qual índios e negros fugiam do litoral para o sertão, após a chegada dos brancos invasores "com suas naus cheias de dores e prisões", uma história que vai avançando no tempo a partir de fragmentos de memória e referências musicais e que não se encontra em manuais de antropologia ou sociologia. 

Difícil explicar em poucas palavras a experiência poética e musical da autora neste livro. Segundo o texto de divulgação da editora, trata-se de "um poema épico-lírico sobre uma viagem em busca da própria identidade", bom resumo sem dúvida, mas insuficiente para explicar essa epopeia mestiça que a autora construiu com base na sua vivência. Talvez melhor definição seja da ensaísta e crítica literária Mariana Ianelli na apresentação da obra: "Um grande poema de redescobrimento que é, para a poeta, um buscar-se a si mesma numa escuta interna, tendo por bússola e amuleto, em viagem ao passado e às notas dos antepassados, uma gaita: 'paraíso perdido prometido', este vialejo azul que a poeta, ainda menina, ganhou do pai e nunca aprendeu a tocar."


          antes de os homens brancos chegarem com suas
          naus nauseabundas e nulas a terra era vasta e nós
          vivíamos livres

          livres e vastos

          livres e vastos 
          livres e vastos

          não éramos vestais

          éramos a vida o verbo e a vastidão
          o verbo a voz e a vastidão

          o verbo

          o verbo
          o verbo

          sem necessidade de deus


          um verbo encarnado encantado escancareado

          entre águas de mar rios riachos lagoas e igarapés

          um verbo

          sem a presença incômoda de um deus
          sem palavra e vestido de escuridão

          um deus branco

          um deus branco
          um deus branco

          um deus triste como tristes eram os negros que 
          aportavam na areia um deus triste como tristes 
          ficamos ao conhecermos jesus e sua cruz cheia
          de espinhos ao trocarmos nossas penas
          brilhantes por espelhos baratos ao vermos nossas
          mulheres caçadas acossadas tomadas à força
          bruta

          um deus branco e cruel que nos fez desejar

          caminhar em romaria rumo ao sertão

A música tem uma parte relevante nessa viagem, de Jackson do Pandeiro a Robert Johnson, a autora nos ensina que o lamento sertanejo é irmão do blues, ambos filhos do sofrimento e da melancolia que lida com sentimentos opostos de resignação e esperança. De Bob Dylan a Gonzaguinha, tudo se mistura no caldeirão cultural de Cida Pedrosa, seja no sertão pernambucano ou no delta do Mississippi, é só gente querendo viver e sonhar.

          bem longe dali em um outro lugar das améri-
          cas em uma outra encruzilhada um artista en-
          controu a virtuose nas cordas do violão afinado
          pelo diabo e se fez lenda andarilho som e náu-
          frago tocava de lado para não repassar os en-
          sinamentos recebidos naquela noite auspiciosa
          fez filhos e teve as mulheres que quis jovens
          mocinhas e mulheres maduras morreu tomando
          uma dose de uísque com cicuta servida por um
          homem enciumado cães negros vieram buscar 
          sua alma e seu corpo repousa em três mauso-
          léus diferentes sua música é a síntese de toda a
          melancolia azul

          tio sound tio sam robert bobby blues johnson

Sobre a poeta: Cida Pedrosa (1963) nasceu em Bodocó, Sertão do Araripe pernambucano. Foi uma das militantes do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco na década de 1980 e daí vem seu gosto e experiência com a récita. Tem sete livros de poemas publicados, sendo os mais recentes Gris (2018), Claranã (2015) e As filhas de Lilith (2009), os dois últimos selecionados pelo Prêmio Oceanos de Literatura. Tem participação em antologias de poemas e contos no Brasil e no exterior.

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