Pádua Fernandes - O desvio das gentes

Literatura brasileira contemporânea
Pádua Fernandes - O desvio das gentes - Editora Patuá - 160 Páginas - Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Alessandro Romio - Lançamento: 2019.

O título desta coletânea de poemas de Pádua Fernandes, O desvio das gentes, é uma leitura irônica da expressão direito das gentes, definida em 1775 por Emer de Vattel  como: "A ciência do direito que tem lugar entre Nações ou Estados, assim como das obrigações correspondentes a esse direito.", ou seja, a especialização que é conhecida hoje como Direito Internacional Público, e que deveria abranger também os Direitos Humanos. Outra inspiração para o livro vem do tratado do filósofo Immanuel Kant, A Paz perpétua, lançado em 1795, que se tornou a base do Direito Cosmopolita, considerando que os indivíduos devem se comportar pacificamente com o intuito de se alcançar a paz de convívio mútuo. 

Na introdução de Taís Franciscon, O deserto prega nos homens / O livro das catástrofes, fica claro que os poemas deste livro irão refletir uma visão muito realista – e nada pacífica – do direito das gentes, como ocorre hoje em nossa aldeia global e que, infelizmente, está muito longe do ideal de hospitalidade de Kant: "temos fronteiras quase intransponíveis para os refugiados, mas conseguimos preservar o mercado global predatório." O que chama a atenção nesta obra de Pádua Fernandes é a estranheza dos temas abordados com a poesia dita tradicional, fato que o poeta deixa claro nestes versos: "Matéria nova de poesia: / não mais pássaros ou abelhas, / ultrapassados seres vivos, / porém as nuvens radioativas, / se espalham mais rapidamente, / desfazem a matéria em gesto / e geram cantos e zumbidos / muito mais lancinantes. // Nova matéria, / a radioativa, / pois seu silêncio / é todo grito. // Matéria nova, / a radioativa, / pois toda pássaro, até na queda." (Museu da sustentabilidade - IV - p. 25)

A poesia do nosso mundo contemporâneo é triste e sem esperança, corresponde a uma visão muito próxima da catástrofe e da guerra; de um capitalismo destruidor do homem e da natureza, que só considera as leis do Livre Mercado: "o cosmopolitismo da bomba, / mais universal do que o humano; // destrói países, mas ergue negócios, / a bomba vende serviços de reconstrução; // cala protestos fazendo-os pagar royalties / às indústrias de música e de armas; // o cosmopolitismo da bomba / declara a igualdade universal dos destroços / que os humanos ocultavam / dentro dos corpos; / a humanidade não cria soluções / antes de elas se tornarem falíveis; // a bomba cosmopolita / fundou o concerto mundial / lasca a lasca, / juro a juro; // não precisa explodir." (Organismo da bomba - III - p. 43)

Nesta situação de catástrofe global e colapso social, as baratas descobriram-se humanas e, afinal, as mesmas nos superam com vantagens na cadeia evolutiva: "As baratas aproveitaram o ensejo para dispensar os imitadores, que, atrevidos, chegaram mesmo a tentar roubar-lhes o discreto canto com aparelhos que trocavam mensagens curtas, sequências mais ou menos desconexas de signos, o equivalente a uma telegrafia de urros, mas de tão curto alcance que não poderia jamais emular a comunicação que as baratas em si logram com o sutil toque das antenas." Um poema em prosa que expressa muito bem o pessimismo generalizado (e justificado) da nossa vida feita de "mensagens curtas", uma verdadeira "telegrafia de urros".
"Foi neste século que as baratas descobriram-se humanas. Elas se reconheceram quando os homens passaram a rastejar pelas frestas a procurar migalhas e gotículas que houvessem sobrado do festim dos predadores, eles mesmos. / Sabe-se que os dinossauros já haviam tentado, sem sucesso, copiar as baratas. Os homens, no fim do Antropoceno, incorreram neste plágio evolutivo: as políticas públicas logo mimetizaram o habitat das baratas; construíram-se cidades com o intuito único de abrigá-las e assim melhor conhecê-las; nas relações sociais reproduziram modelos de esgoto que eram próprios desses futuros ex-insetos; destarte, cunhou-se uma harmonia inexprimível entre os mundos sobre e sob a terra. Nunca, porém, os homens souberam imitar a paciência das antenas, e por isso entraram em desarvorada extinção, o pós-moderno não conseguiu emular o paleozoico. / As baratas aproveitaram o ensejo para dispensar os imitadores, que, atrevidos, chegaram mesmo a tentar roubar-lhes o discreto canto com aparelhos que trocavam mensagens curtas, sequências mais ou menos desconexas de signos, o equivalente a uma telegrafia de urros, mas de tão curto alcance que não poderia jamais emular a comunicação que as baratas em si logram com o sutil toque das antenas. / Aventa-se que os homens já teriam desaparecido de todo, substituídos com vantagem pelas baratas na vida pública e na privada: elas voam sem poluir. / Outra vantagem: ao contrário dos homens, não podem ser acusadas de ex-humanas." - Inseticida para humanos (p. 37)
Sobre o autor: Pádua Fernandes (Rio de Janeiro, 1971) escreveu os livros de poesia O palco e o mundo (Lisboa: etc, 2002), Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), Cálcio (Lisboa: Averno, 2012; São Paulo: Hedra, 2015; a tradução para o espanhol, feita por Aníbal Cristobo, foi publicada na Argentina por Libros de la Talita Dorada em 2013), Código negro (Desterro: Cultura e Barbárie, 2013) e Canção de ninar com fuzis (Bragança Paulista: Urutau, 2019). Publicou também o volume de contos Cidadania da bomba (São Paulo: Patuá, 2015) e o ensaio Para que servem os direitos humanos? (Coimbra: Angelus Novus, 2009), além de diversos artigos nos campos de literatura e direitos humanos. Organizou a única antologia da poesia de Alberto Pimenta publicada no Brasil, A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek, 2004). Realizou pesquisa de pós-doutorado no IEL–Unicamp sobre literatura brasileira contemporânea e justiça de transição. Recebeu o Prêmio Minas de poesia inédita por Cálcio em 2012, e o prêmio Guavira, do governo do Estado do Mato Grosso do Sul, por Cidadania da bomba, como melhor livro de contos de 2015. Foi pesquisador da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e da Comissão da Memória e da Verdade da Prefeitura de São Paulo.

Comentários

Bacana. Vou procurar este volume. Abraço
Alexandre Kovacs disse…
Oi Aguinaldo, obrigado pela visita e comentário! Grande abraço

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