Grada Kilomba - Memórias da Plantação

Episódios de Racismo Cotidiano
Grada Kilomba - Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano - Editora Cobogó - 249 Páginas -  Capa de Rara Dias e Paula Delecave (foto de Zé de Paiva) - Tradução: Jess Oliveira - Lançamento: 2019.

A escritora e psicóloga portuguesa Grada Kilomba – com origens em Angola e São Tomé e Príncipe – é militante do feminismo negro e autora de Memórias da Plantação: Episódios do racismo cotidiano, livro publicado originalmente em inglês em 2008, que avalia o racismo e seus impactos sobre raça, gênero e classe. "Descolonizar o conhecimento" é a ideia que move esta obra, sabendo que, ainda hoje, todos os "conceitos de conhecimento, erudição e ciência estão intrinsicamente ligados ao poder e à autoridade racial", relegando o pensamento negro a discursos marginais, fora do contexto acadêmico.

Grada Kilomba aborda questões importantes sobre as formas contemporâneas do racismo que adaptou as antigas concepções do colonialismo, apelativas de uma falsa "superioridade biológica", para as novas abordagens que, em vez disso, falam de "diferença cultural" ou de "religiões" e suas incompatibilidades com as culturas nacionais, principalmente nos países europeus. Portanto, ocorre uma mudança no conceito de "biologia" para "cultura" e, apesar da ideia de superioridade não estar implícita, é disso que se trata novamente. As diferenças sendo interpretadas como "inferioridade" e gerando o preconceito, apoiado pelo poder.
"Há uma máscara da qual eu ouvi falar muitas vezes durante minha infância. A máscara que 'Anastácia' era obrigada a usar. Os vários relatos e descrições minuciosas pareciam me advertir que aqueles não eram meramente fatos do passado, mas memórias vivas enterradas em nossa psique, prontas para serem contadas. Hoje quero recontá-las. Quero falar sobre a máscara do silenciamento. Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do 'sujeito negro', instalado entre a língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores 'brancos' para evitar que africanas/os escravizadas/os comessem cana-de açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os 'Outras/os': Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?" (p.33)
Na linha de outros grandes pensadores da descolonização e sistemas de opressão e dominação de classes, como Frantz Fanon (1925-1961) e Gloria Jean Watkins (bell hooks), a obra é decorrente do doutoramento de Grada Kilomba na Alemanha que obteve a mais alta distinção acadêmica, a summa cum laude. Um livro que demonstra como o racismo não se limita a um passado colonial, mas representa uma realidade traumática em muitas sociedades, inclusive naquelas que se intitulam como uma "democracia racial", como a nossa.

Os mecanismos do racismo atuam de forma mais cruel contra as mulheres negras, tornando-as invisíveis e formando o "racismo genderizado": "Mulheres negras têm sido, portanto, incluídas em diversos discursos que mal interpretam nossa própria realidade: um debate sobre racismo no qual o 'sujeito' é o homem 'negro'; um discurso genderizado no qual o 'sujeito' é a mulher 'branca'; e um discurso de classe no qual 'raça' não tem nem lugar. Nós ocupamos um lugar muito crítico dentro da teoria" (p. 97)

Sobre a autora: Grada Kilomba é uma artista interdisciplinar, escritora e teórica, com raízes em Angola e São Tomé e Principe, nascida em Lisboa, onde estudou psicologia e psicanálise. Na esteira de Frantz Fanton e bell hooks, a autora reflete sobre memória, raça, gênero, pós-colonialismo, e sua obra estende-se a performance, encenação, instalação e vídeo. Kilomba cria intencionalmente um espaço híbrido entre as linguagens acadêmica e artística, dando voz, corpo e imagem aos seus próprios textos. Os seus trabalhos foram apresentados na 32ª Bienal de São Paulo, na 10ª Bienal de Berlim, na Documenta 14, na Fundação Calouste Gulbenkian e na Pinacoteca de São Paulo, entre outros espaços. Vive atualmente em Berlim, onde se doutorou em filosofia na Freie Universität e foi professora no Departamento de Gênero da Humboldt Universität.


Comentários

Olá Alexandre! Parabéns pela resenha, muito interessante. Essas questões estão tão politizadas hoje, que tal publicação à princípio não me despertou interesse julgando ser mais do mesmo, mas percebi que não é o caso. Vou adicionar na minha lista de leitura.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Kelly, obrigado pelo comentário. Realmente é uma obra acadêmica muito bem estruturada e que vale a pena conhecer. Grande abraço.

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