calí boreaz - tesserato

Poesia contemporânea
calí boreaz - tesserato - Editora Caos e Letras - 108 Páginas - Projeto Gráfico: Cristiano Silva - Arte de Capa: Eduardo Sabino - Lançamento: 2019.

Para tentar explicar o efeito de uma quarta dimensão, além do universo tridimensional conhecido, formado por largura, comprimento e profundidade, utiliza-se o efeito de uma figura geométrica que não existe na realidade, chamada de tesserato ou hipercubo. O conceito básico parte do princípio de que, assim como o quadrado é formado por linhas perpendiculares e o cubo é constituído por quadrados perpendiculares, o tessarato é gerado por cubos perpendiculares em uma suposta quarta dimensão, simultaneamente perpendicular às outras três.

Uma interessante característica do tesserato é que, apesar de não mudar de forma, podemos vê-lo de maneiras diferentes, segundo nosso ponto de vista. Assim, começa a fazer sentido a relação dessa curiosa abstração geométrica com a poesia de calí boreaz que também parte de elementos básicos, transformando os conceitos e sentidos originais em múltiplos elementos.

No entanto, toda essa argumentação sobre geometria pode passar a ideia de que os poemas da autora sejam o resultado de intrincadas e obscuras composições, nada mais falso. Prova disso é o trecho abaixo do genial poema em prosa chamado intento (p. 11), que funciona como uma espécie de declaração de intenções e introdução ao livro:

tentativa é uma palavra bonita. porque é corajosa a ponto de se permitir errar, trair-se, não chegar. tem me obcecado um pensamento: saber não chegar onde se estava tão-pronto para chegar é tão bonito quanto chegar.
 
[...]

a verdade é que já tem muita coisa no mundo. escrevendo, não se imagine que eu queira acrescentar algo ao mundo. eu quero é subtrair algo do mundo – um obstáculo um tapume um floreio uma palavra demais, uma certeza.

quero escrever para simplificar – e isso pode ser bem complicado. mas eu (in)tento.

Tentando "escrever para simplificar", a poeta sabe que a fragilidade da palavra pode ser uma armadilha no caminho, mas também uma forma de surpreender o leitor. Afinal, "o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência – não existindo, pode ainda resistir? [...]", trecho do poema em prosa mamihlapinatapai (p. 54). 

Tudo isso nos leva a concluir que "existir é difícil até para as palavras" como bem resume calí boreaz em * nota da poeta (p. 101), mas a vida, eventualmente, precisa de uma pausa no interior do poema como acontece em janelitude (p. 69) que, com o seu toque de surrealismo, nos convida para "tomar chuva e chocolate e prestar atenção nos deuses que não te prestam a  menor atenção", uma perfeita definição para essa janela da alma que se chama poesia.

janelitude

ei ei você
tu, sim
vem cá 
apoia-te aqui 
no parapeito deste poema 
descansa um pouco 
posso servir um café, queres? 
espera, não vás 
pode ser chá 
chuva 
chocolate 
também prefiro 
também me acalma 
isso, apoeta-te aqui 
não bate o sol aqui 
aqui é sempre meio madrugada 
meio lusco-fusco 
sim, também estou em trânsito 
embora esteja aqui à janela 
mas repara ela não tem vidro 
porque isto não é uma casa 
isto é um poema 
espreita aqui 
vês? não há móveis 
também não há portas 
por que eu chamo isto de janela 
então? 
boa pergunta 
então fica mais um pouco 
pousa esse peso 
desamarra o cabelo 
oi : ) 
eu reparei logo em ti, sabes 
estavas a caminhar com muita pressa de 
nada 
eu também ando assim 
e depois às vezes entro num poema 
há vários vazios por aí 
nunca tinhas reparado? 
é porque nunca tinhas parado 
se não se parar como é que se vai reparar 
está pronta a chuva 
pronto 
chuva e chocolate é receita certa de parança 
dizes tu portanto que 
se não há portas cá dentro 
não pode isto ser uma janela pra fora 
pois não existindo assim 
o próprio dentro e o próprio fora 
não haveria precisança de janela 
o próprio conceito de janela se tornaria absurdo 
sem o dentro e o fora que a condicionam 
à função de ser janela 
isso está tudo muito certo 
do ponto de vista arquitetônico 
mas já te disse — isto 
não é arquitetura 
isto é um poema 
achas que só o ramo é que está na árvore? 
a árvore toda ela está no ramo esquartejado 
assim como um país inteiro está no exilado 
e a vida toda se deixa conter num segundo de ponteiro 
assim como o universo cabe no teu cabelo 
assim desamarrado 
então 
não são só o dentro e o fora que têm uma janela 
a janela também tem em si o dentro e o fora 
mesmo que neste preciso momento 
a gente já não saiba quem 
está fora e quem 
está dentro 
e por isso é que isto 
é a janela de um poema 
serve apenas pra parar 
pousar o peso 
desamarrar o cabelo 
descansar um pouco 
tomar chuva e chocolate 
e prestar atenção nos deuses que 
não te prestam a menor atenção

Sobre a autora: calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua e literatura romenas e tradução literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, Portugal e Brasil, 2018], é um relato poético do exílio e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. calí integra a coleção Identidade vol. II da Amazon Kindle [2019] com o conto islandeses. Seus textos têm aparecido também em várias revistas literárias brasleiras, portuguesas, galegas e mexicanas, bem como em exposições de Portugal e da Índia. Em 2020, surge seu segundo livro de poesia, tesserato, pela Caos e Letras.

Comentários

sonia disse…
Quanta perspicácia nesse poema! É mesmo instigante fazê-los a partir da quarta dimensão. A autora mergulha fundo.... Há um livro cuja edição em Português está esgotada, chamado Tertium Organum, que explica o que é a quarta dimensão.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Sonia, este livro que você citou foi lançado originalmente na Russia em 1912 (autor: P.D. Ouspensky), existe versão em inglês na AMAZON com o subtítulo "uma chave para os enigmas do mundo". Achei uma associação muito criativa o tesserato com a poesia! Grande abraço

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