James Baldwin - Notas de um filho nativo

Literatura norte-americana
James Baldwin - Notas de um filho nativo - Editora Companhia das Letras - 248 Páginas - Tradução de Paulo Henriques Britto - Capa de Daniel Trench - Lançamento: 24/09/2020.

Notas de um filho nativo do romancista, dramaturgo, ensaísta, poeta e ativista social norte-americano James Baldwin (1924-1987) foi lançado originalmente em 1955, reunindo dez ensaios publicados em diferentes jornais e revistas no período de 1948 a 1955 e se tornou um clássico na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, já que, um clássico, segundo Italo Calvino, "é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer", e este parece ser exatamente o caso desta obra, ainda tristemente atual. Os textos foram concebidos na mesma época de dois de seus maiores romances: Go Tell It on the Mountain (1953), de caráter autobiográfico com questões sobre religião e sexualidade na sua juventude e O quarto de Giovanni (1956), em que o protagonista é um americano branco vivendo em Paris que se apaixona por um bartender italiano chamado Giovanni.

Os ensaios foram divididos em três partes. Na primeira, estão agrupados aqueles que se assemelham a resenhas críticas e referentes à discussão sobre o papel do artista negro na sociedade. Por exemplo, no ensaio O romance de protesto de todos, uma análise demolidora de A cabana do pai Tomás; em Muitos milhares de mortos, a "vítima" é Filho nativo de Richard Wright, considerado, até então, o grande romance sobre a segregação racial nos Estados Unidos; já em Carmen Jones: negro, mas não muito, uma avaliação de um filme de Hollywood de 1955 que apresentou uma releitura da ópera Carmen utilizando um elenco negro para criar, segundo o autor, "um erotismo estéril e incômodo". É claro que o valor dos ensaios não está apenas na avaliação crítica das obras, mas sim nas várias inserções e digressões nas quais o pensamento inteligente e sensível de James Baldwin aflora para as questões realmente importantes, como no trecho em destaque abaixo.

"O negro é um problema social, e não pessoal, nem humano; pensar nele é pensar em estatísticas, cortiços estupros, injustiças, uma violência distante; é enfrentar uma catalogação infinita de perdas, ganhos, escaramuças; é sentir-se virtuoso, indignado, desamparado, como se o status do negro no país fosse sempre de alguma forma análogo a uma doença – o câncer, talvez, ou a tuberculose – que é preciso controlar, ainda que não se possa curá-la. [...] O tempo fez algumas mudanças no rosto do negro. Fracassaram todas as tentativas de torná-lo exatamente igual ao nosso, embora de modo geral a intenção, ao que parece, seja a de fazer dele uma página em branco, já que ele não pode virar um rosto branco. Quando o rosto negro se tornar uma página em branco e o passado tiver sido lavado dele por completo, tal como foi lavado do nosso, nossa culpa será extinta – ou pelo menos deixará de ser visível, o que imaginamos ser quase a mesma coisa." (pp. 45-46) - trecho de Muitos milhares de mortos

Na segunda parte, os textos podem ser enquadrados na categoria de "ensaios pessoais" com um estilo memorialista que descreve a sua experiência e da sua família com o racismo. Em O gueto do Harlem, uma descrição do cotidiano no bairro e as relações entre negros e judeus, Em Viagem a Atlanta, uma reflexão sobre a política de segregação no sul do país, Notas de um filho nativo é definitivamente o texto mais forte e que deve ter sido o mais difícil para o autor, no qual ele lembra da sua difícil relação com o pai, David Baldwin, um pastor batista que se casou com sua mãe quando ele ainda era criança, vindo a ter ainda oito filhos deste casamento.

"No dia 29 de julho de 1943, meu pai morreu. No mesmo dia, algumas horas depois, sua última filha nasceu. Mais de um mês antes disso, quando todas as nossas energias estavam concentradas na espera desses acontecimentos, havia ocorrido em Detroit um dos conflitos raciais mais sangrentos do século. Horas depois da cerimônia fúnebre de meu pai, quando ele ainda estava na câmara-ardente, uma revolta racial irrompeu no Harlem. Na manhã do dia 3 de agosto, levamos meu pai para o cemitério, passando por ruas caóticas, cheias de cacos de vidro. [...] O dia do enterro do meu pai foi também o dia em que completei dezenove anos. Quando o levamos ao cemitério, estávamos cercados pelos detritos da injustiça, da anarquia, do descontentamento e do ódio." (p. 108) - trecho de Notas de um filho nativo

A última parte concentra as reflexões que descrevem a vida de expatriado na Europa, onde Baldwin se autoexilou por nove anos, de 1948 a 1957. Em Encontro à margem do Sena: negros e pardos, uma análise da vida dos americanos em Paris, avaliação que se torna mais realista no ensaio Uma questão de identidade: "o parisiense não manifesta o menor interesse pessoal, a menor curiosidade, a respeito da vida ou dos costumes de qualquer estrangeiro", para chegar até uma passagem verdadeiramente kafkiana de Baldwin em Paris, quando ele foi preso por ter sido acusado de receptador de lençóis roubados, descrito em Igualdade em Paris, terminando com Um estranho na aldeia no qual escreve sobre o tempo que passou em uma pequena cidade na Suíça.

Um texto tão importante quanto os ensaios e de uma beleza e sensibilidade compatíveis com qualquer obra literária é a Nota autobiográfica que tem um trecho em destaque abaixo.

"[...] Seja como for, sei que o momento mais crucial da minha formação foi aquele em que fui obrigado a admitir que eu era uma espécie de bastardo do Ocidente; quando traçava a linha do meu passado, eu não ia parar na Europa, e sim na África. E isso queria dizer que, de alguma maneira sutil, de alguma maneira muito profunda, eu era obrigado a encarar Shakespeare, Bach, Rembrandt, as pedras de Paris, a catedral de Chartres e o Empire State Building com uma atitude especial. Essas criações não eram realmente minhas, não abrigavam minha história; seria inútil procurar nelas algum reflexo de mim. Eu era um intruso; aquele legado não era meu. Por outro lado, eu não dispunha de outro legado de que pudesse me valer – sem dúvida, não estava capacitado para sobreviver na selva, numa tribo. Eu teria que me apropriar dessa história branca secular, teria que torná-la minha – aceitar minha atitude especial, meu lugar especial nesse esquema –, senão não teria lugar em esquema algum. O mais difícil foi ter que admitir algo que sempre escondi de mim mesmo, algo que o negro americano sempre tem de esconder de si mesmo para poder obter algum progresso público: que eu odiava e temia as pessoas brancas. Isso não significava que eu amava os negros; pelo contrário, sentia desprezo por eles, talvez por não terem conseguido produzir Rembrandt. De fato, eu odiava e temia o mundo. E isso significava que eu não apenas dava ao mundo um poder assassino sobre mim, mas também que, nesse limbo de autodestruição, eu nunca poderia me tornar escritor. [...]" - (p. 28) - trecho de Nota autobiográfica 

Complementam o livro uma introdução de Edward P. Jones, um ensaio de Teju Cole que não deixa nada a dever aos ensaios do próprio Baldwin, assim como dois posfácios, um de Paulo Roberto Pires e outro de Márcio Macedo, que ajudam muito o leitor brasileiro a se situar no contexto da obra e da biografia de James Baldwin, um dos autores mais importantes da literatura do século XX.

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Comentários

sonia disse…
Lendo sua resenha percebi que o sofrimento faz milagres e transforma uma vítima dele num grande escritor. Quem está na zona de conforto nem se ocupa em escrever sobre suas experiências!
Alexandre Kovacs disse…
Sônia, realmente o sofrimento parece ser muito inspirador para as artes de uma forma geral.

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