Mário Baggio - Verás que tudo é mentira

Literatura brasileira contemporânea
Mário Baggio - Verás que tudo é mentira - Editora Coralina - 206 Páginas - Diagramação, projeto gráfico e capa: Angel Cabeza - Lançamento: 2020.

O paranaense Mário Baggio é um especialista na técnica da narrativa curta. Inspirado na melhor tradição de grandes autores da escola hispano-americana, como Horacio Quiroga, Julio Cortázar e, mais recentemente, Samanta Schweblin – para citar apenas três exemplos na linha do tempo – desenvolve um estilo muito próprio de literatura fantástica ao se rebelar contra o absurdo da realidade cotidiana, transformando-a em ficção.

Nesta sua quarta antologia de contos, o autor reflete sobre a mentira e a nossa eterna e "irresistível atração pelo engano", afinal, citando o próprio Mário Baggio no texto de apresentação de seu site: "A literatura é uma mentira. O ato de escrever, a quem o pratica, permite ludibriar a realidade e criar regras próprias – burlando, fingindo, enganando, iludindo, mentindo! –, sem que ninguém peça ou dê explicações." Quem sabe essa nossa capacidade de iludir e contar histórias ainda vai nos salvar da barbárie.

O autor sabe manobrar muito bem no curto espaço de suas narrativas, sempre permeadas por um humor estranho e deslocado – desconfortável mesmo eu diria – para criar um efeito perturbador, como podemos constatar em "Uma família de muito barulho", texto reproduzido integralmente abaixo. No entanto, Mário Baggio também surpreende em "Pelo retrovisor", abordando um tema básico sobre a nossa condição humana ao descrever as mudanças que o amor sofre com a passagem do tempo em um conto certeiro de apenas três parágrafos. Um belo exemplo de literatura e um livro recomendado para aqueles que acreditam na ficção.

Uma família de muito barulho
Um conto de Mário Baggio

    Em minha casa os familiares falam ao mesmo tempo, menos eu. Todos acham isso estranho e não raro se perguntam se eu teria alguma doença ou um tipo de retardo mental. Izildinha, minha irmã mais velha, sim, como fala! Ninguém a ouve, como de resto ninguém ouve ninguém nesta casa, mas não lhe faltam elogios por sua verborragia natural e sua incrível capacidade de emendar uma frase na outra, um assunto no outro, sem perder a linha de raciocínio. Izildinha era um prodígio. Dizem que ela começou a falar aos catorze meses e desde então não parou mais. Como eu quase não falo, além da hipótese do retardo mental, outro dia ouvi que consideravam a possibilidade de eu ter sido trocado na maternidade. Achei essa ideia muito assustadora e sem sentido, mas por via das dúvidas, passei a observar melhor as feições de meu pai e de minha mãe e compará-las com as minhas na frente do espelho. Fiquei mais aliviado quando constatei que meu nariz era tão feio quanto o de minha mãe.

    Somos seis: meu pai, que acabou de chegar aos sessenta anos, minha mãe, que se aproxima de meio século de vida, minha irmã Izildinha, que completou dezoito e nunca se esquece de mencionar que já é de maior, meu avô, que já chegou aos noventa, mas pensa que tem oitenta e cinco, e minha avó, cuja idade eu não sei, tampouco ela. E eu, que sobrevivi para chegar inteiro aos doze anos.

    Em minha família, falar demais parece ser genético. A cada dia se instala uma verdadeira tertúlia no café da manhã, em que todos bebem de tudo, menos café – minha avó, por exemplo, não abre mão da taça de licor de hortelã, Bom para despertar as energias adormecidas e matar as bichas. O mesmo falatório acontece no almoço e no jantar. Minha família gosta mesmo é de falar, e falar muito, Eu não entendi até hoje como meu avô consegue ouvir rádio, ver televisão e ler o jornal sem que isso o impeça de gritar com minha mãe e mandar que eu tire o dedo do nariz, Eita, rapazinho porcalhão!

    Meu pai se preocupa com os boletos a pagar, comenta que a inflação voltou e que nesse governo só tem ladrão. Minha mãe corre pela casa inteira, limpa o banheiro e arruma os quartos e informa em voz alta qual será o cardápio do dia. Aproveita para dar bronca em meu avô, que insiste em caminhar sem usar a bengala. Isso é pra gente velha e coxa, resmunga ele. Minha mãe também perde um tempo enorme para convencer minha avó, pela enésima vez, de que eu não escondi sua dentadura postiça e de que ela, a dentadura, continua no lugar de sempre: dentro da boca da velha. Esse pirralho vai vender os meus dentes pra comprar chumbinho de espingarda, diz a minha avó, mordendo os dentes e olhando feio em minha direção.

    Minha irmã Izildinha só se preocupa com a morte. Toda manhã ela vai até a cama de cada um para dar um beliscão. Quer ouvir o Ai! de todos bem cedinho. Seu temor é que alguém morra durante o sono. Até hoje isso não aconteceu, mas ela não desiste. Assim que vê todos de pé, sorri, satisfeita, e desanda a falar. Sempre que pode, visita o cemitério da cidade. Seu passeio favorito é andar entre as lápides para ver se chegou algum defunto novo. Diz que só ali encontra paz. Minha mãe conseguiu, com muito custo, fazê-la perder a mania de comparecer a velórios de desconhecidos. Como todos estavam acostumados a só ouvi-la falar sobre morte, hoje ela causou enorme surpresa quando, assim que viu todos reunidos para o café da manhã, deu uma declaração de vida:

    – Estou grávida. O pai é o Chico Lacraia.

    Chico Lacraia é funcionário do cemitério municipal, encarregado da exumação de cadáveres. Uma profissão linda, segundo minha irmã Izildinha. Minha mãe desmaiou. Meu pai guardou os boletos no bolso e tomou duas taças de licor de uma só vez. Minha avó fingiu que não tinha ouvido nada. E eu, pela primeira vez na história da família, pude escutar o zumbido de uma mosca na cozinha de casa. 

Pelo retrovisor
Um conto de Mário Baggio

    Bom seria se amanhã eu pudesse olhar pra você com os olhos de ontem. Assim, depois de uns poucos meses, conseguiríamos superar essa indiferença doída que existe hoje entre nós e começaríamos de novo com nossas brigas. Num par de anos estaríamos na fase das pequenas discussões cotidianas, todas por motivos sem importância e, muito pouco tempo depois, você retomaria o seu riso contagiante e recuperaria aquela forma graciosa de mexer nos cabelos que só você sabe fazer.

    Eu voltaria a desejar você cada vez mais, até que deixássemos de viver juntos para sermos apenas namorados. Faríamos amor pela primeira vez. Passearíamos de mãos dadas debaixo de chuva na Paulista, e riríamos até não poder mais, sem motivo algum. Num domingo qualquer sentaríamos num café, desses românticos com mesas na calçada, e passaríamos horas ali, vendo a vida escorrer diante de nossos olhos espantados.

    Finalmente, numa distração minha, eu esbarraria em você na escadaria da biblioteca da Faculdade de Jornalismo, num dia ensolarado de dezembro. Eu ficaria encantado pela menina de cabelos longos até a cintura, loira. Você estaria com a camiseta verde sem mangas, aquela com a cara do Jim Morrison, a calça jeans desbotada e o par de tênis All Star vermelho. Eu sorriria pra você, pediria mil desculpas pelo esbarrão e o seu número de telefone.

Sobre o autor: Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog homem de palavra, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou três livros de contos: "A (extra)ordinária vida real" (2016), "A mãe e o filho da mãe e outros contos" (2017) e "Espantos para uso diário" (2019). Teve textos publicados em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, LiteraturaBR, Literatura & Fechadura, Gueto, Ruído Manifesto, Crônicas Cariocas, InComunidade, Escrita Droide e Subversa. Participou da "Antologia Ruínas", da Editora Patuá, e da coletânea de poemas "Fragua de Preces", editada em espanhol.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Verás que tudo é mentira de Mário Baggio

Comentários

Unknown disse…
Acabei de ler dois contos do Mario Baggio, são sensacionais. Adddoooreeeiiii.
Cinthia Kriemler disse…
O Mário Baggio tem uma escrita única, chancelada pelo domínio da narrativa curta. Grande escritor. Sagaz, ácido, forte. Parabéns, Mário! E parabéns Alexandre por mais uma ótima resenha.
Alexandre Kovacs disse…
Os dois contos citados são ótimos mesmo! Uma pequena ideia do estilo do autor.
Alexandre Kovacs disse…
Oi Cinthia, obrigado pela visita e comentário. Fico feliz que tenha gostado da resenha.

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