João Paulo Parisio - Retrocausalidade

Literatura brasileira contemporânea
João Paulo Parisio - Retrocausalidade - Cepe Editora - 428 Páginas - Projeto gráfico e capa de Luiz Arrais - Lançamento: 2020.

Vencedor do 6º Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura (antigo Prêmio Pernambuco de Literatura), representando a Região Metropolitana do Recife, o romance de João Paulo Parisio consolida o nome do autor no cenário da nova literatura brasileira, um destaque merecido depois do seu elogiado livro de contos Homens e outros animais fabulosos de 2018. O conceito de retrocausalidade, associado à física quântica e à filosofia, inverte a causalidade, ou seja, considera que um efeito possa preceder a sua causa, fazendo com que passado, presente e futuro percam a sua relação de precedência, imaginem as inúmeras possibilidades deste conceito no campo da literatura.

Na verdade, Retrocausalidade não se enquadra no formato tradicional de um romance e é composto, em suas mais de quatrocentas páginas, por uma variedade de gêneros: novelas, contos, fragmentos e ensaios, fazendo da leitura sempre uma surpresa renovada ao transitar por estilos como a literatura fantástica, o realismo mágico e a ficção científica, sem se fixar em nenhum. Por sinal, é surpreendente a geração de autores, além de João Paulo Parisio, trabalhando em Pernambuco com o tema do insólito, se podemos chamar assim, escritores como André Balaio (Quebranto) e Ney Anderson (O espetáculo da ausência), para citar apenas dois dos já resenhados por aqui.

Na obra de João Paulo Parisio, percebe-se a influência de grandes autores: José Saramago, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Murilo Rubião e muitos outros ao longo do texto, sinal de que certamente existe um leitor voraz que o inspirou para recriar o legado dos mestres. No entanto, as referências literárias não devem ser encaradas como um mero recurso de cópia, mas sim uma ferramenta de trabalho, propiciando um engenhoso exercício de metaficção.

"Este livro ainda não existe. A afirmação anterior, por existir, é necessariamente falsa. A afirmação anterior, por existir, é necessariamente falsa? Tal coisa só pode ser real, ainda não existir, quando não se declara. Que compromisso, entretanto, o livro a vir a existir tem com a realidade? Acaso se trate de um livro de ficção, não é este o terreno propício para o tipo de declaração acima, com a qual, segundo ela própria, ele não se abre, ainda que se anuncie? Eu, a autoconsciência deste isto, existo, mas o livro que se seguirá, ainda não. E no entanto a declaração com que nasço pode ter sido a última coisa escrita no livro que ela afirma ainda não existir. Mera prestidigitação. Literatura. Isso interfere em sua validade? A cronologia em que o livro se inscreve guarda qualquer relação com a cronologia que a ele se circunscreve? A que cronologia pertence essa declaração prévia, se não pertence ao tempo do livro nem ao tempo do tempo, que pode ser o tempo de um outro livro, apenas, em cuja tinta estamos imersos? Apenas? Ademais, conforme declaro, ninguém me escreve. Ninguém escreve aqui, aqui aqui se escreve, portanto aspas são incabíveis. Aqui nada cita, tudo é, acaba de nascer, com o frescor da palavra frescor ao emergir das águas recém-sidas. Tudo acaba de não ser, e também você acaba de nascer para mim: agora. Isto não é a palavra agora. Isto é o agora. Olhos nos olhos, somos só eu e você. Enquanto você não prosseguir, não cruzar o portal e adentrar o labirinto, e assim te fazes uma causa posterior ao efeito, este livro ainda não existe."

O livro é difícil de resumir em poucos parágrafos, o que não deixa de ser um grande elogio para o autor. Como ponto de partida, a tentativa kafkiana de Maria das Graças, moradora da ilha de Deus, uma mulher pobre que sobrevive da coleta de mariscos, em uma repartição pública para comprovar que é a mãe de seu filho morto, sem ter a evidência da certidão de nascimento. Segundo ela: "A certidão de nascimento a maré bebeu. Chuva que Deus mandava. De ajudar a gente ele não lembra, ou quando lembra é de uma vez, ou manda água demais, ou manda sol que não se acaba. Deus não cozinha nada que preste." Álef, o funcionário que a atende, é um colecionador de antigas carteiras de trabalho e fotos 3X4 digitalizadas com as quais imagina as trajetórias de vida (ou morte) dos beneficiários. Ele é sensibilizado pela simplicidade da mulher e tenta ajudá-la, principalmente por ter se tornado órfão há pouco tempo.

"Com a ajuda do Google Tradutor (contrabandeei um notebook e interceptei uma Wi-Fi), busco cidades e lugares chamados Solidão, na língua dos países, ou nos países das línguas, em que se encontrariam, distribuídas pela crosta terrestre. Segundo o Google Maps, não há nenhuma cidade chamada Loneliness em países de língua inglesa, nenhuma cidade chamada Soledad em países de língua espanhola e apenas um lugar chamado Bakardadea, que é solidão em basco, na Espanha. [...] Há no mundo cinco cidades chamadas Solidão, todas no Brasil. Uma no Rio Grande do Sul, uma em Minas Gerais, uma na Bahia, uma em Pernambuco e outra no Ceará. [...] Também apenas no Brasil há cidades chamadas Soledade (palavra que abrange a solidão e a saudade), uma no Rio Grande do Sul e outra na Paraíba. E um bairro no Recife. Quanto a ruas, há cinco. Uma em Goiana, duas em Jaboatão dos Guararapes e duas no Recife, todas em Pernambuco. O Brasil, portanto, além de ser o país do carnaval, do futebol e da impunidade, é o país da solidão, e Pernambuco o estado mais solitário do país. O Recife é a capital nacional da solidão. Terá por isso inventado uma alegria tão metálica quanto o frevo, que é quando o mar dessa solidão multitudinária ferve? [...]" (pp. 175-6)

Em Quimerismo, um novo romance dentro do romance, o personagem Ramanuvem trabalha como estátua viva numa ponte do Recife e mora no semifictício bairro da Soledade, em um apartamento de 43 metros quadrados no edifício Yucatán, no centro de um emaranhado de narrativas paralelas ligando o passado, presente e futuro. Um livro surpreendente que nos mostra como a literatura pode ser "uma forma de auto-hipnose mediada pela linguagem escrita, em que o hipnotizador trabalha à distância no espaço e no tempo." 

Sobre o autor: João Paulo Parisio nasceu em 4 de setembro de 1982, no Recife. É autor de Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, Editora Patuá), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe Editora) e Legião anônima (contos, 2014, Cepe Editora), obras que o situaram entre os expoentes da nova literatura brasileira. Participou ainda do segundo volume de Ficcionais (2016, Cepe Editora), onde autores nacionais que se destacaram na década descrevem seus processos criativos.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Retrocausalidade de João Paulo Parisio

Comentários

Mundo de K

Olá!
Que trabalho lindo. Desconhecia o autor, mas essa crítica é maravilhosa e os fragmentos que escolheu são perfeitos. Obrigada por nos apresentar e resenhar uma obra tão instigante.
Abraços,
Elisabeth Lorena Alves
Alexandre Kovacs disse…
Elisabeh, muito grato pela visita e comentário! Grande Abraço.

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