Micheliny Verunschk - O som do rugido da onça

Literatura brasileira contemporânea
Micheliny Verunschk - O som do rugido da onça - Editora Companhia das Letras - 168 Páginas - Capa: Alceu Chiesorin Nunes - Ilustração "O clã das onças" de Jaider Esbel - Lançamento: 2021.

Um romance histórico bem diferente porque é narrado a partir do ponto de vista da cultura dos povos originários. Sabemos que a formação da nação brasileira não foi pacífica e a assimilação da cultura indígena ocorreu na forma de um verdadeiro genocídio, inicialmente como guerra bacteriológica entre as moléstias que o branco trazia e eram fatais para a população indígena e, posteriormente, pelas sucessivas tentativas de escravização dos nativos. livro foi inspirado pelas litografias de duas crianças indígenas, nomedas como Miranha e Juri, publicadas no album Viagens ao Brasil em 1823 pelo zoólogo Johann Baptist von Spix e e o botânico Carl Fiedrich von Martius.

Como resultado da viagem ao interior do Brasil, iniciada no Rio de Janeiro em 1817, a menina e o adolescente foram capturados pelos naturalistas Spix e Martius e levados para Munique, juntamente com outras espécies da fauna e da flora local, a maioria não resistindo à difícil travessia do oceano. Os sobreviventes, batizados como Isabella Miranha e Johann Juri, morreriam pouco tempo depois de chegar a Munique, sem imunidade contra as doenças da época, assim como pouca resistência à hostilidade do inverno europeu, além, obviamente, de todo o sofrimento de terem sido afastados de suas famílias e mantidos isolados pela barreira do idioma.

As crianças aprendem ao longo da sofrida epopeia a dura verdade: "quem não tem palavra está morto" e que a história é uma prerrogativa dos vencedores, porque o papel que vai contá-la "suporta tudo" e "as letras são animais que, depois de domesticados, apenas obedecem." Além do valor histórico e antropológico, com base em trechos de artigos e manchetes de periódicos alemães e franceses do século XIX, o livro é, principalmente, um exemplo de como fazer literatura a partir de mitos, do vocabulário e da sabedoria da tradição indígena brasileira. Destaque para a belíssima capa desta edição que representa muito bem o espírito do romance.

"Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância. De como foi levada mar a fora para uma terra de inimigos. E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz. Preste atenção, essa voz que eu apresento agora não é a mesma voz que ecoava pela mata chamando pelos seus irmãos mais velhos enquanto colhia frutas para levar para a maloca. E muito menos á a voz que foi silenciada por baixo das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas e, depois, contida pelos risos nervosos dos cortesãos e pela impaciência rude das 'Fraülein'. [...] empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em apreendê-la. Assim, se há uma recusa em usar a palavra taxidermia e se escolhe usar a palavra desencantamento, há teimosia nisso. E pode ter certeza de que Iñe-e aprovaria esse recurso. Se, em lugar de rio, ela falar muaai ou até 'Fluss', pode se tratar de uma admoestação a respeito do que lhe fizeram. Para contar esta história, Iñe-e adverte que não é possível ser tolerante. Ademais, usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor. É possível envenená-la, zarabatana, como fazem os guerreiros do povo miranha com o curare preparado com o suor e sangue de suas mulheres. É possível incendiá-la, curare quente e amargo. E de todo modo, como já se disse, é possível usá-la como se quiser." (pp. 14-5)

Um ponto central no conceito desta obra é o resgate da narrativa pela voz do povo exterminado, ou "desencantado", como descrito no livro. Micheliny Verunschk foi extremamente feliz ao deslocar o ponto de vista para a menina sequestrada que ganhou um nome, Iñe-e, e não apenas Miranha, designação da tribo: "Essa é a voz do morto, na língua do morto, nas letras do morto. Tudo eivado de imperfeição, é verdade, mas o que posso fazer senão contar, entre as rachaduras, esta história?" A própria onça, criatura mítica também ameaçada de extinção e que permeia esta história com muito lirismo, ganha uma linguagem própria. 

O som do rugido da onça
Litografias de Miranha e Juri, publicadas no album Viagens ao Brasil em Munique, 1823 por Johann Baptist von Spix e Carl Fiedrich von Martius

"Ao fim da primeira semana, as duas crianças serão batizadas em uma cerimônia oficiada por um padre sonolento. Causará espanto aos fiéis que o menino não tenha retirado o chapéu em sinal de respeito a Deus ao entrar na igreja. São sempre impressionantes as coisas que as pessoas escolhem para se escandalizar. Mas o incidente será rapidamente resolvido, e se desculpará a natureza ingênua e selvagem do pequeno bárbaro. / Isabella e Johann são os nomes escolhidos para a nova vida que os brancos pensam dar a Iñe-e e ao menino Juri sob os desígnios do rei, que, a propósito, se chama Maximiliano I da Baviera. É curioso que a um rei se possa destronar, guilhotinar ou até executar ante a salva dos fuzis, mas que seu nome ninguém retire. Mesmo que deixe de ser rei, seu nome composto de vários outros nomes, em uma teia labiríntica de ascendentes, será sempre uma marca do privilégio que recebeu ainda em berço. Isso, claro, se for um rei branco. O menino Juri, por exemplo, que sucederia a seu pai em algum momento de sua vida na floresta, tem seu nome negado. O certo é que para seus captores só interessa saber que ele é Johann, do povo juri, e ela, Isabella, do povo miranha. Ou tão somente Miranha e Juri, dois rostos sem corpo, dois nomes sem história." (p. 73)

A narrativa principal é intercalada com passagens sobre uma personagem atual, Josefa, uma mulher que "foge de sua história", desconhece detalhes sobre seus ascendentes ou de algo que defina o seu passado e, ao visitar a exposição patrocinada por um banco sobre a história dos indígenas, sofre um desconforto que não tem como motivação apenas a indignação política: "o lugar é asséptico, a iluminação, planejada e fria, e certamente não há sangue dos negros e dos índios pingando visivelmente sobre documentos, telas, manchando as moedas antigas." Josefa nos mostra como o tema do extermínio dos povos indígenas ainda apresenta consequências em nossa sociedade.

"Josefa é uma mulher que fugiu. Em todo lugar do mundo, em qualquer tempo, há uma mulher fugindo. Quando uma mulher foge, invariavelmente foge de sua história, de um passado incômodo que se materializa numa relação abusiva, ou de uma vida que se afigura mesquinha ou llimitante, ou dos ecos de algum fracasso, ou de uma vida que não soube ou não pôde se reinventar. Josefa não sabe exatamente do que fugiu. Ou não quer saber. Mora há três anos na metrópole e, desde sua chegada, segue operando estratégias de apagamento da própria identidade. Não mantém contato com os amigos e familiares que deixou para trás, se educando em novos gostos, novas experiências, construindo uma desidentidade. Nada assim tão bem pensado, tão planejado, mas vivido cotidianamente. Quando se deita na cama, apaga sob o som vertiginoso do trânsito da avenida mais próxima. Não quer pensar por que veio ou no que deixou. Não há mal algum em viver o agora, repete para si mesma. Se divide entre traduções e a escrita de livros didáticos, a única literatura que dá retorno neste país, costuma brincar, e as aulas a que assiste na universidade são como ouvinte, já que não consegue se decidir se quer seguir carreira acadêmica ou não." (pp. 87-8)

Em um momento crucial da nossa história e do mundo, quando se percebe que, apesar de tudo, a preservação do meio ambiente é fundamental para a sustentabilidade econômica e a própria sobrevivência da humanidade, a necessidade do resgate da tradição dos povos indígenas faz parte deste contexto e não pode ser ignorada. Lindo exemplo de como fazer literatura, um livro que certamente estará incluído entre os melhores lançamentos do ano.

Micheliny Verunschk
Sobre a autora: Micheliny Verunschk nasceu em 1972, em Pernambuco. Escritora e historiadora, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2015 com Nossa Teresa: Vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014), foi duas vezes finalista do Prêmio Rio de Literatura, além de finalista do antigo prêmio Portugal Telecom, hoje prêmio Oceanos. Micheliny é doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O som do rugido da onça de Micheliny Verunschk

Comentários

Unknown disse…
Lindo surpreendente lírico livro. Fiel às figuras e seus olhares para longe nas litografias que os retratam.

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