Ana Paula Maia - De cada quinhentos uma alma

Literatura brasileira contemporânea
Ana Paula Maia - De cada quinhentos uma alma - Editora Companhia das Letras
94 Páginas - Capa de Guilherme Xavier - Lançamento: 2021

O mais recente lançamento da escritora e roteirista carioca Ana Paula Maia, mantém o estilo de seus livros anteriores, com personagens à margem da sociedade, submetidos a uma realidade violenta e cruel. A novela, que pode ser lida separadamente, é o segundo volume da trilogia que teve início com Enterre seus mortos (Prêmio São Paulo de Literatura 2019) e conta com um trio de anti-heróis formado por Edgar Wilson, que trabalha recolhendo corpos de animais das estradas, Bronco Gil, assassino de aluguel, fugitivo de uma colônia penal (personagem de Assim na terra como embaixo da terra, Prêmio São Paulo de Literatura 2018) e do ex-padre Tomás, que tem uma forma muito peculiar de entender o bem e o mal, na verdade uma característica comum aos três.

Adotando um estilo cinematográfico que poderia ser resumido como um "faroeste distópico", a autora capricha no tom apocalíptico, associando um desastre ambiental a uma epidemia fora de controle (qualquer semelhança com nosso tempo seria mera coincidência?), tudo isso cercado de sinais e profecias bíblicas sobre o fim do mundo em uma região rural não definida, provando que a ficção ainda consegue fazer frente à realidade. Afinal, nos dias de hoje, o apocalipse pode estar logo ali na esquina e "se não se consumar pela ira dos céus, inevitavelmente se consumará pela ira dos homens", a mensagem que fica é uma só: "Arrependei-vos, pecadores! A morte é chegada. É tempo de matar, é tempo de morrer".

"Desde que a epidemia se instalou, as estradas estão desertas, assim como ruas, praças e parques. As fronteiras fechadas, e o abastecimento, comprometido. A escassez começa a dar passagem ao desespero. Nas últimas três semanas, raramente um automóvel é visto circulando por essas bandas. Com a epidemia, veio o isolamento. Com o isolamento, o silêncio. As explosões nas pedreiras cessaram e nem o cricrilar de um grilo ou o mugido de uma vaca pode ser escutado. Quem não suporta a si mesmo entenderá que o inferno não são os outros nem está nas profundezas dos abismos." (p. 17)

E, de fato, os três protagonistas precisam matar para viver: "vivem para morrer todos os dias, como os santos beatificados em espírito, como os santos mortificados em carne." A situação se torna ainda mais complexa quando precisam lidar com as forças do exército que perseguem os contaminados para levá-los aos "campos de morte" onde devem ser exterminados. Aos poucos, começa a ficar claro que, além da influência do céu e do inferno, o caos pode fazer parte de um projeto político maior do governo que pretende eliminar vilarejos e pessoas sem deixar rastros. 

"Em qualquer outro momento das suas vidas, eles seriam parados e presos por estarem transportando uma centena de corpos. Mas hoje é diferente. Possuem licença para passar justamente por estarem conduzindo os mortos para um destino que relutam em acreditar, mas que começa a se concretizar conforme avançam pela estrada e veem no horizonte a densa fumaça preta subindo ao céu e dissipando-se antes que possa tocar a nuvem mais alta. / A fuligem miúda que se espalha no ar lembra flocos de neve caindo com a chegada do inverno. Apesar do frio, aqui não há neve. Nunca houve. A beleza que o vento espalha simulando um inverno rigoroso carrega o cheiro dos ossos e das vísceras incinerados." (p. 85)

A violência e a morte são elementos constantes no repertório de Ana Paula Maia e não foi diferente neste livro, talvez ainda mais pelo fato de ter sido escrito durante o ano da pandemia, o que deve ter contribuído para o efeito opressivo que perpassa toda a narrativa, assim como outras características do universo ficcional da autora, tais como o misticismo e a influência dos textos bíblicos que inspiram imagens fortes como a nuvem de milhares de gafanhotos que envolve a caminhonete com os três personagens. Pena que o livro acaba tão rápido.

"Quando partiam para a guerra, os soldados repartiam as sobras da batalha, os bens conquistados com a vitória sobre o adversário. Eram os espólios de guerra. Fosse ouro, fossem armas. Até mesmo mulheres e gado. São esses os tributos dos homens de guerra. Assim era ordenado pelo Senhor que os homens que pelejavam em Seu nome, quando vitoriosos, deveriam repartir os bens conquistados na batalha travada consigo. 'De cada quinhentos uma alma'; tanto dos homens como dos bois, dos jumentos e ovelhas. Tudo era repartido com o Senhor. A alma de homens, de bois, de jumentos e ovelhas. Tudo que era repartido deveria ser sacrificado. Com o sangue derramado em combate, também se derrama sangue em reverência a Deus, tornando sagrados o combate, os espólios e a guerra." (p. 93)

Sobre a autora: Nasceu no Rio de Janeiro e atualmente mora em Curitiba. É autora de diversos romances, entre eles Carvão animal, De gados e homens, Assim na terra como embaixo da terra e Enterre seus mortos. Tem contos publicados em diversas antologias e foi duas vezes vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura. Como roteirista da TV Globo, foi responsável pela série Desalma.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar De cada quinhentos uma alma de Ana Paula Maia

Comentários

Unknown disse…
Otima resenha. caro. Obrigada. Li o Enterre seus mortos e estou pensando em continuar a série.
Alexandre Kovacs disse…
Obrigado pela visita e comentário amiga!

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