Emmanuel Carrère - Ioga
O título e a capa deste livro podem levar à falsa impressão de que se trata de um manual prático sobre ioga, uma espécie de guia de autoajuda que busca aproveitar o interesse generalizado do público pela antiga disciplina indiana, bem como pelas orientações sobre meditação e seus benefícios para a saúde física e mental. De fato, essa foi a ideia inicial de Emmanuel Carrère, um admirador dessas tradições orientais, ao idealizar o projeto: “escrever um livrinho simpático e perspicaz sobre a ioga”. Contudo, o renomado escritor francês conhecido por obras como "Limonov" e "O Reino", com seu estilo único de autoficção que combina romance, jornalismo, ensaio e autobiografia, como era de se esperar, foi muito além dos limites da ideia inicial.
A primeira parte da narrativa descreve, em detalhes, a decisão do autor de participar de um retiro chamado Vipassana no interior da França, uma experiência de meditação intensiva que consiste em passar dez dias em silêncio absoluto, alimentação vegetariana e praticando a meditação por várias horas, sem qualquer acesso a celular, computador e até mesmo livros. As observações e reações de Carrère sobre todo o processo, que ele descreve como “nível hard”, bem como as dos outros participantes, já justificam a publicação do livro. No entanto, a jornada é abruptamente interrompida no quarto dia, devido à morte de Bernard Maris, economista, jornalista e amigo próximo, durante o ataque terrorista ao jornal satírico Charlie Hebdo em Paris.
"Já que é preciso começar por algum lugar o relato desses quatro anos, durante os quais tentei escrever um livrinho simpático e perspicaz sobre a ioga, enfrentei coisas tão pouco simpáticas e perspicazes quanto o terrorismo jihadista e a crise dos refugiados, mergulhei a tal ponto numa depressão melancólica que precisei ser internado por quatro meses no hospital Sainte-Anne e, por fim, perdi meu editor, que pela primeira vez em trinta e cinco anos não vai ler um livro que escrevi, já que é preciso começar, então, por algum lugar, escolho esta manhã de janeiro de 2015 em que, ao fechar a mala, me perguntei se seria melhor levar o telefone, do qual de todo modo eu teria de me desfazer no lugar para onde eu estava indo, ou se deveria deixá-lo em casa. Escolhi a opção radical, mal tinha saído do nosso prédio já achava excitante andar fora do alcance do radar. [...] Os retiros Vipassana: um treinamento 'tropa de elite' da meditação. Dez dias, dez horas por dia, em silêncio, isolado de tudo: nível hard. Nos fóruns de internet, muitos se declaram satisfeitos e às vezes transformados por essa experiência exigente, outros acusam-na de ser uma espécie de recrutamento para uma seita. Descrevem esse lugar como um campo de concentração e a palestra diária como uma lavagem cerebral, sem deixar espaço para qualquer discussão — para não mencionar contradição. É a Coreia do Norte. O silêncio obrigatório, o isolamento, uma alimentação insuficiente baixam a guarda dos participantes e os transformam em zumbis. [...] (pp 11-18)
A partir deste ponto, a vida de Carrère entra em uma espiral de destruição: diagnosticado com transtorno bipolar, ele enfrenta uma crise profunda de depressão, agravada pelo fim de seu casamento. Finalmente, a sua irmã decide interná-lo em um hospital psiquiátrico, onde a equipe médica opta pela "artilharia pesada", um tratamento conhecido anteriormente como eletrochoque e atualmente chamado de ECT — sigla para eletroconvulsoterapia. Tudo isso é relatado sem filtro, já que, segundo o autor, a literatura é "o lugar onde não se mente", Ele reforça a honestidade brutal quando afirma: "Sem querer me vangloriar, sou excepcionalmente dotado na capacidade de transformar em um verdadeiro inferno uma vida que teria tudo para ser feliz."
"Observar sua respiração, imóvel, em cima de uma almofadinha é o que se chama de meditação, prática cada vez mais difundida e que deveria ter sido o único tema desse relato se a vida não a tivesse arrastado, como você verá, para paragens mais tempestuosas. [...] Tudo aquilo que acontece durante esse tempo em que se permanece sentado, imóvel e em silêncio é meditação. Busquei com frequência uma boa definição para ela - a mais precisa, simples e abrangente possível - e encontrei muitas que vou tirar da cartola ao longo deste relato, mas essa me parece ser a melhor para começar, por ser a mais concreta e a menos intimidadora. Repito: a meditação é tudo aquilo que acontece durante esse tempo em que se está sentado, imóvel e em silêncio. O tédio é meditação. As dores nos joelhos, nas costas, na nuca, são meditação. Os pensamentos aleatórios são meditação. Os barulhos estranhos na barriga são meditação. A impressão de estar perdendo tempo ao fazer um troço de espiritualidade trambiqueira é meditação. A preparação mental para o telefonema e a vontade de pegar o telefone são meditação. Resistir a essa vontade é meditação — mas ceder a ela, não. E isso é tudo. Nada além disso. O que for além disso já é demais. [...]" (pp. 22-24)
Na parte final, em uma tentativa de obter alívio para o seu estado de desordem mental, Carrère viaja para a ilha grega de Leros, em um campo de refugiados, onde passa a ensinar escrita criativa para alguns jovens: "Se vim para cá é porque estou procurando um lugar para ir quando não se sabe mais para onde ir, e tenho a impressão de tê-lo encontrado." O livro nos deixa com um sentimento de ambiguidade entre a esperança e a resignação, expressa de forma tocante em um belo trecho escrito em segunda pessoa: "Você continua a não morrer tanto quanto consegue. Você continua a não morrer, mas seu coração não está mais lá. Você não acredita mais. Você acredita que já gastou sua cota e que nada mais vai acontecer. Um dia, no entanto, alguma coisa acontece. O desconhecido, que você espera e de que duvida, toma a forma de uma desconhecida específica que você começa a conhecer e com quem caminha em uma trilha de montanha em Maiorca. [...]"
"Tenho uma convicção, apenas uma, sobre o tipo de literatura que eu faço: 'é o lugar onde não se mente'. É o imperativo absoluto, todo o resto é acessório, e acredito ter sempre obedecido a este imperativo. O que escrevo talvez seja narcisista e vaidoso, mas eu não minto. Posso afirmar tranquilamente, poderia afirmar tranquilamente diante do tribunal dos anjos, que isso que me atravessa, que eu penso, que eu sou, e que certamente não me dá motivos para me vangloriar, poderia afirmar que eu escrevo 'sem hipocrisia', como exige Ludwig Börne. Mas Ludwig Börne também exige que se escreva 'sem deturpar', e eu normalmente também tenho essa intenção, mas aqui é diferente. Cada livro impõe suas regras, que não são fixadas de antemão, e sim descobertas ao longo do caminho. Não posso dizer deste livro o que com orgulho disse de muitos outros: 'Tudo aqui é verdade'. Ao escrevê-lo, preciso deturpar um pouco, deslocar um pouco, apagar um pouco, principalmente apagar, porque sobre mim posso dizer o que eu quiser, inclusive as verdades menos lisonjeiras, mas sobre os outros, não. [...]" (p. 132)
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