Mariana Higa - Cavala,
O corajoso romance de estreia de Mariana Higa aborda o direito ao controle do próprio corpo, um direito frequentemente negado a mulheres e meninas vítimas de abuso sexual e violência doméstica. Essa realidade se torna ainda mais evidente em regiões isoladas, no interior do país, onde desigualdades econômicas e sociais perpetuam as agressões, frequentemente culminando em maternidades não desejadas. Nessas circunstâncias, em famílias religiosas, a interrupção da gravidez sequer é cogitada, mesmo diante de casos de estupro cometido por membros da própria família. A despeito da decisão de realizar ou não o aborto, a sentença é cruel e definitiva: a menina deixa de existir, transformando-se em uma mulher devastada, sem perspectivas de futuro.
Izabel, a protagonista-narradora, engravida aos doze anos em um pequeno sítio no interior de Minas Gerais nos anos 1950. Ela é conduzida em segredo a um aborto clandestino pelo próprio abusador — seu tio, que convivia com ela na mesma casa —, enfrentando uma realidade brutal, comum em casos semelhantes. A violência contra a menina persiste, e, aos quatorze anos, uma nova gravidez, já avançada com mais de vinte e duas semanas, vem à tona, tornando-se de conhecimento de toda a família. Com o apoio da mãe, Izabel enfrenta um embate judicial com as autoridades, além de manifestações religiosas contrárias à sua decisão de interromper a gestação: "E finalmente, foi abortada. Ela não abortou, fora abortada. Cada vez mais, ela sentia que seu corpo era mais dos outros e menos seu."
"É preciso acreditar que mariposas cegam e que borboletas pretas dão má sorte. / Tudo é uma desculpa para matar coisas bonitas. / Tampouco sabia eu que a insustentável natureza de ser mulher me tornaria uma benção e uma maldição e que, por isso, eu muitas vezes cairia e me levantaria tal como a filha de Abena, assim como eu me apagaria e me acenderia, em impassível constância, como a vela de uma bruxa. Ainda assim, eu viveria com a sensação imaterial de estar mais vivendo do que morrendo, mesmo que meu corpo contasse outras histórias – tudo porque um dia ousei ficar em pé em cima de um cavalo selvagem. / A primeira vez que a cavala apareceu foi na noite do meu aniversário de sete anos. Este, certamente, não era o nosso primeiro encontro, pois ela me conhecia de outros interlúdios (embora eu não me recordasse). [...] Eu facilmente concluí que bastava viver para se começar a morrer. / Mesmo assim, eu era inesperada. Quem me via concluía que eu era feliz, ainda que triste. Eu estava em busca da palavra certa para sê-la. Talvez eu tivesse que criá-la." (pp. 13-4) - Trecho da primeira parte: "Quando uma menina nasce"
Mariana Higa incorpora o realismo mágico em sua narrativa, alternando o cotidiano brutal da protagonista com a aparição de uma entidade fantástica: uma cavala que a transporta para encontros com figuras mitológicas e históricas. Essa presença mística acompanha Izabel ao longo de sua vida, sempre prenunciando eventos trágicos, mas, ao mesmo tempo, oferecendo-lhe um breve alívio. No decorrer da trama, Izabel e a mãe se mudam para Niterói, no Rio de Janeiro, onde ela desperta para a paixão pela literatura, incentivada por um professor que apoia seu gosto pela leitura e escrita e consegue, com a ajuda dele, cursar a Universidade. Entre os amigos próximos desse professor, encontra-se uma conceituada escritora da época — ninguém menos que Clarice Lispector.
"Se a vida de Izabel fosse comparada a um rio, neste momento estaríamos caminhando para uma cachoeira cuja queda não sabemos a altura. Não sabemos também se há pedras lá embaixo. Não sabemos se vamos sobreviver. Só sabemos que a queda é inevitável. / Izabel esperava um feto de vinte e três semanas. Entretanto, assim que sua mãe requisitou o seu direito ao aborto, o delegado tentou dissuadi-las: que tivesse o bebê, e que se não fossem mantê-lo, que o entregassem para a adoção. Quando tentaram dificultar o seu acesso, a mãe de Izabel, surpreendentemente, apareceu com uma cópia do Código Penal, apontando para o Decreto Lei de 1940 que garantia o aborto em caso de estupro. Então o procedimento foi agendado para dois dias depois no hospital do centro da cidade. [...] No entanto, dois dias depois, a luta continuaria. Mesmo acompanhadas da assistente social e da autorização para o procedimento, o médico e o hospital se negaram a realizar o aborto. Disseram que ela passara de vinte e duas semanas e acima disso eles não o fariam." (pp. 46-7) - Trecho da segunda parte: "Quando a cavala fala"
Quando tudo parecia caminhar bem para Izabel — incluindo a publicação de seu primeiro romance —, a repressão política das décadas de 1960 e 1970 se impõe brutalmente. Detida para interrogatório devido à sua participação em um coletivo feminista que lutava pelos direitos das mulheres negras e pela legalização do aborto, ela enfrenta sessões repetidas de tortura antes de ser finalmente libertada. Agora, precisará reunir forças, apesar de seu corpo e espírito profundamente marcados, para concluir um novo livro. Mariana Higa nos apresenta nesta estreia uma obra potente que defende a dignidade e os direitos das mulheres sem ser panfletária, um belo exercício de literatura.
"Coloquei-me a escrever todos os dias, para continuar a existir, para continuar a viver sob o tom da batida das teclas. Trabalhava por toda a noite, depois ia para a pensão e escrevia por longas horas. / Haviam me quebrado de tal forma que eu já não sentia como antes. Então, talvez tivessem me consertado? Eu já não tinha medo, não tinha nada mais a perder. Se achavam que minhas ideias sobre o aborto eram perigosas, que então eu usasse minha máquina de escrever para fazer algo que parecia mais perigoso ainda. Escrever era muito perigoso. Escrever sobre o meu corpo era uma forma de voltar para casa. / Mas foi então que meu corpo começou a dar sinais de alerta. Não só meu espírito estava cansado, ele também. Meu corpo já não tinha mais a mesma força para que eu pudesse extrapolar seus limites. Muito do que sentia, eu já havia notado, mas pretendia ignorar. Eu só seria forçada a prestar atenção de fato quando já fosse tarde. [...]" (p. 130) - Trecho da terceira e última parte: "Quando os anos não terminam"
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