Paula Poc - Artrópode
Paula Poc surpreende com a sua prosa poética que utiliza diferentes técnicas narrativas para contar a inusitada história de uma mulher que se apaixona por um inseto. O texto mescla fluxo de consciência, poemas, entradas de diário e cartas, enquanto incorpora definições científicas que adquirem tons oníricos ao longo do livro. Essa fusão entre sonho e realidade permeia toda a obra, tornando o projeto literário da autora difícil de resumir ou categorizar, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Apesar da inspiração kafkiana da trama nos fazer lembrar do clássico personagem Gregor Samsa e sua improvável metamorfose, em Artrópode as tranformações ocorrem no interior da protagonista-narradora que tenta compreender e superar as perdas amorosas como um processo de evolução.
"Te vejo sentado, nitidamente desconfortável, as asas apoiadas formando um ângulo esquisito. As antenas longuíssimas ultrapassam as copas das árvores de folhagem densa e escura. Ao seu lado, bem pertinho, uma única pessoa não está de preto. Ela usa óculos, posa com as pernas cruzadas, tênis verde-bandeira, um decote que deixa boa parte do seu colo à mostra e a franjinha curta extremamente mal cortada. Suas cores se sobressaem no verde, cinza, marrom e preto que dominam todo os resto. Seus lábios atravessam as bochechas, chegam até as têmporas, fazem os olhos se fecharem e os ombros se contraírem. Ela ri. É a única que ri de verdade, com olhos e dentes, o tronco curvado de tanta felicidade. É cada dia mais difícil me reconhecer nessa mulher." (p. 31)
A analogia entre a estrutura dos insetos e a narrativa que está sendo desenvolvida é uma chave importante para decifrar as intenções da autora: "Artrópodes ao crescerem fazem a muda. / Deixam para trás o esqueleto antigo. / Aquele que ficou pequeno para seus corpos." Ou nesta outra passagem: "Artrópodes ao contrário de pessoas humanas / depois de todas as mudas / são duros por fora / moles por dentro." Nesse sentido, vale destacar o trabalho de pesquisa que viabilizou a ideia original. Deixo com vocês alguns exemplos da poesia sensível de Paula Poc.
toda vez a mesma coisa
não se engane
a mesma palavra
não dirá coisas
novas
diferentes
limpas
essa palavra
já usada
gasta
surrada
e por isso
mesmo
conhecida
confortável
foi essa palavra
essa mesmo
que te traiu
não deixa, mulher
escreve.
vácuo
esta noite caiu um temporal.
intenso ruidoso
trazendo perigo
quebrando coisas
como a chuva que brotou
de mim
inadvertidamente
aos borbotões
em soluços espasmos
o corpo trêmulo
encolhido e pequeno
diante do imenso
do céu.
a água nascendo dos olhos
escondendo embaçando a luz
das estrelas
as estrelas.
continuavam lá
atrás da névoa
atrás das nuvens que encobriam
óculos cara e peito inteiro
não deixavam ver mais
nada
vazar assim tanto
tão intensamente
é também um tipo de gozo
libertador e vão
restei vazia
oca sobre a madeira
exaurida
dormi com o som da chuva forte
não dormia assim há dias
semanas
um sono denso e escuro
exausta de lágrima e tanta eletricidade
que os lençóis não tocam minha pele
só os pelos
uma camada ínfima
de ar
entre corpo
e pano
sonho com céus de estrelas
que mordem
os olhos
como quando J. era bem pequeno
e montado na minha cacunda disse
mamãe o sol tá mordendo meu olho
dei a ele meus óculos escuros
e segui ofuscada pela luz tão brilhante
esta noite caiu um temporal.
fora e dentro
tudo tanto que dormi
enfim.
desde que te encontrei durmo
totalmente nua
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