Lara Haje - Eu não disse
Lara Haje - Eu não disse - Editora Cachalote - 136 Páginas - Ilustração de Carolina Nogueira - Lançamento: 2024.
Os contos de Lara Haje, em sua estreia na ficção, podem ser lidos de forma independente, contudo o leitor logo perceberá as conexões entre os mesmos personagens que vão sendo reveladas aos poucos, fazendo com que o conjunto de narrativas isoladas e não lineares se transforme em um romance, um processo que requer habilidade na condução das histórias que se cruzam de forma envolvente. Adicionalmente, a polifonia resultante da alternância das vozes dentro de uma mesma estrutura familiar é uma estratégia da autora para oferecer múltiplas perspectivas, enriquecendo a trama e aprofundando a compreensão dos eventos sob diferentes ângulos.
Os temas explorados refletem o cotidiano de uma família de classe média, abordando questões recorrentes na sociedade contemporânea. No conto "Espelho", por exemplo, a protagonista, uma adolescente de treze anos, assume o protagonismo demonstrando a sua insatisfação com o próprio corpo em uma sociedade na qual ser magra é sinônimo de beleza, saúde e sucesso, o que pode originar quadros clínicos graves e complexos, tais como a anorexia e a bulimia. Já em "Você", conto que abre o livro, a autora trata com sensibilidade a experiência do luto, contrastando o peso da ausência com a inevitável continuidade da vida doméstica.
"Se pudesse se livrar de cada dobrinha, cada pedaço desta carne nojenta, a pele: tudo sobra nesta pança, neste corpo cilíndrico; vomita, se esvazia, e depois ele todo infla de novo. Se pudesse cortava fora era com faca, um cortezinho e outro, sangue sujo e bonito, se pudesse sair junto a gordura amarela, intestino grosso, esta merda toda apodrecida e ressecada, melhor um rolo de cozinha, amassar a barriga, parece mesmo um pão, deitar no chão, abrir a massa igual pizza, afinar. Agora a bunda, de bruços, lamber as bactérias frias, quem sabe uma dor de barriga, quem sabe um enjoo, uma virose daquelas que secam, e não precisasse enfiar o dedo na garganta, odeia enfiar o dedo na goela, queria as entranhas jorrando descontroladas, que saíssem os pedaços de biscoito Oreo engolidos quase inteiros, que sobrasse um estômago chapado, um vazio, um nada que expandisse e ocupasse tudo, até o último fio de cabelo. Uma paz, onde houvesse só o escuro e o oco, onde não pudesse ver este espelho mostrando o que existe: um corpo grande demais para seus treze anos, que mais parecem dezessete." (p. 25) - Espelho
No divertido "Pasta de dente: modo de usar", identificamos prontamente dois tipos distintos de pessoas que coexistem no mundo — nem sempre em perfeita harmonia: aquelas que pressionam a pasta de dente no meio e aquelas que, com método e precisão, apertam apenas no sentido de baixo para cima. A protagonista nos demonstra como esses hábitos aparentemente banais podem influenciar nos relacionamentos, levando a conflitos diários. Outro conto bem-humorado, que já captura a atenção do leitor logo pelo título é "Merda, em árabe", a protagonista relembra uma visita à casa dos avós quando era ainda menina.
"'Não aperta no meio da pasta, porra, não aguento mais essa merda'. A voz trovejada logo cedo. 'Desculpa'. Minhas pálpebras ainda fechadas, sonadas. Eu pedia muita desculpa quando a embalagem das pastas de dentes era mais metálica do que plástica. Levantava num susto, mas espremia de novo no meio, bem no meio, o coração do tubo. Corria uma corrente eletrizante e sádica pela minha pele, o creme jorrando abundante da ponta, desperdiçado no ralo. A hortelã espumava esquecida na boca, cerdas da escova dilaceradas, mastigava absorta, me perdia no espelho, engolia um tico, cuspia a acidez que restava. O que sobrava da gosma branco neve na pia eu deixava se misturar ao porcelanato, meus vestígios evidentes. O Afonso imprimia sua ordem austera no tubo: dobrava a extremidade, passava o cabo da escova de dentes por cima, pra que não sobrasse nenhum resquício do creme; outra vez, o cabo da escova desamarrotando igual roupa, até que todo o conteúdo se acumulasse na parte de cima, camuflando a tripla ação, inchando o Colgate. [...]" (p. 51) - Pasta de dente: modo de usar
No conto que empresta o título ao livro, "Eu não disse", a narrativa é conduzida também de forma leve por uma menina de sete anos que nos leva a refletir sobre a importância de compartilhar os sentimentos e as coisas importantes que nunca são ditas: "[...] Minha mãe envolve meus ombros com o braço e dá dois tapinhas. Seus abraços nunca são de frente e nem apertados. Ainda assim um cheiro de mãe. 'Achei que você fosse', eu não falo pra minha mãe. [...] Minha mãe compra dois Chicabon, um pra ela e um pra mim. Vou tomar sozinha na beira do lago, prateado de longe, barrento de perto, o doce e o salgado misturados na boca." Um belo exercício de literatura.
"Danielle com dois éles aparece um domingo de cortininha no clube. Até então desfilávamos sem parte de cima com a mesma convicção das nossas mães: crianças não precisam de sutiã. E, de repente, aquela traição me deixando pelada, aos sete anos, na frente dos garotos. Ela, com oito. Meu peito descampado, e a corcunda pululou neste dia, certeza. / Além de tudo, do nome do meu tipo preferido, chique, terminado em dois éles, Danielle era dourada, tinha coxas grossas e uma tornozeleira de prata cheia de penduricalhos. Eu, com uns cambitos brancos de Galgo, pelos pretos escovados. Às vezes tentava arrancá-los grudando um adesivo — tinha visto minha mãe depilar com cera quente no salão do clube. A técnica, mantida em segredo. Treze anos, minha mãe sentenciou, com treze anos você pode depilar. No período eleitoral, fazia estoque: abria a janela de trás do carro e aceitava todos os adesivos nos semáforos — Ronaldo Caiado, Enéas, Afif Domingos." (p. 89) - Eu não disse
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