Luiza Fariello - Hoje, deserto
Os contos de Luiza Fariello tratam com sensibilidade as questões relacionadas à maternidade e outros desafios impostos às mulheres em uma sociedade na qual vivemos em um constante estado de solidão e vulnerabilidade — como expressa o sugestivo título do livro —, apesar das redes sociais que foram criadas pretensamente com o objetivo de aproximar as pessoas e atingem resultado oposto na prática. Em cada narrativa, as protagonistas se deparam com impasses emocionais e profissionais que algumas vezes as obrigam a desistir, levando-nos a interpretar o substantivo do título como verbo, no sentido de desertar, abandonar, fugir. Em qualquer dos casos, essas mulheres são desafiadas a superar suas próprias fragilidades e tomar decisões.
No conto de abertura, "Parto", Lenice enfrenta a estranheza e os problemas de adaptação com a filha adotiva, até que é chamada pela primeira vez de mãe pela menina: "Paralisada, Lenice não sabe o que fazer com aquela palavra. Quer vesti-la como uma roupa, mas tem medo do tecido rasgar, não servir em seu corpo imenso. Quer engoli-la, mas dessa forma a palavra perderia sua natureza, desdobraria em outra, se emendaria em frases. Então escolhe isso: nada. Fica apenas admirando as três letras boiando no ar, subindo pelas paredes da casa, agora delas." Já em "Bola de gude", narrado em segunda pessoa, uma mulher em situação vulnerável, devido a problemas na gravidez, tem um dia ruim ao ser ameaçada por um golpe comum nas grandes cidades.
"Você acordou abruptamente com a musiquinha irritante do despertador do celular e perdeu o sonho, para nunca mais. Só que, estranhamente, você ficou com um vestígio dele, um cheiro que ainda sente, mas já vai se esvaindo — até quando vai durar? —, embora não se lembre mais da história, em que contexto se deu aquele aroma. E quando esse pensamento toma forma, já se foi todo o sonho, por inteiro, você nunca mais saberá o que se passou dentro da sua cabeça naquela noite. Quando pequena, você costumava anotar seus sonhos, talvez queira transmitir esse hábito ao seu filho. Então você se concentra no ser dentro de você, será que já acordou também, sonhava o mesmo? Parou de se mexer, você afasta ideias ruins e busca se tranquilizar, daqui a pouco você vai fazer ultrassom e então tudo será esclarecido, não há por que sofrer antes." (p. 22) - Trecho do conto Bola de gude
Isabela, a protagonista de "Eu sei que é assim", participa de uma ridícula dinâmica de grupo em uma grande empresa ao concorrer com outros candidatos a uma vaga de emprego. Durante a atividade, seus seios começam a vazar, um sinal de que o filho de sete meses, deixado aos cuidados de uma vizinha, precisa mamar. Como ela deverá agir? Já em "Corre", quem assume o protagonismo do conto é uma onça-pintada chamada Soraia, que transforma o cotidiano do zoológico onde é mantida ao se comportar de maneira estranha devido à gravidez. A sua cuidadora irá ajudá-la a recuperar a liberdade, enquanto lida com seus próprios problemas.
"Abro a grade de segurança, antes da grade principal — essa que garante a sua prisão —, deposito em uma bandeja giratória o alimento, saio do local, aciono o botão que faz a roda girar e a carne chegar a ela feito a pizza que eu peço no meu prédio, eu sou o motoboy da onça. Muitos metros antes de eu chegar, ela já sente o meu cheiro e se inquieta, vai para perto da grade, sabe o que vem. Notei a mudança, uma preguiça maior, o banho mais demorado no lago, a lambeção incessante das patas, a braveza maior de quem precisa proteger alguém além de si, tudo se fazendo um pouco mais por dia, essas coisas ela me dizia sem dizer e quando o homem do avental sedou-a, uma flechada, transportou-a em uma maca, jaula, micro-ônibus, hospital, para devolvê-la ainda sem sentidos, tudo isso para dizer 'são dois filhotinhos aí dentro'; eu já sabia e mesmo que não soubesse jamais faria tudo isso para descobrir. [...]" (p. 40) - Trecho do conto Corre
No excelente "Ainda estamos longe", o melhor conto da coletânea, três mulheres compartilham o limitado espaço da classe econômica de um avião rumo aos Estados Unidos. Uma delas é uma mãe com um bebê e as outras duas são mais velhas com filhos já crescidos. A narradora, posicionada no assento central, é forçada a ouvir a incessante conversa da mulher à sua esquerda enquanto inveja a jovem mãe, que aparentemente finge estar dormindo. A situação se complica quando uma forte turbulência coloca todos em risco, fazendo com que a passageira inconveniente tenha um colapso, vindo a falecer. A autora consegue desenvolver vários temas com a situação tragicômica estabelecida, demonstrando o domínio da forma e conteúdo da narrativa.
"O avião se estabiliza novamente, ou estou sonhando, estou, não estou, é verdade, o comandante está falando, algo grave no motor, uma pane de qualquer coisa que não compreendo o nome, foi preciso acionar outro equipamento de nome mais complicado ainda, as sílabas chegam ao meu cérebro e não fazem sentido, todos estão sorrindo e aplaudem, batem palmas para as aeromoças, essas agora têm um sorriso de verdade e não mais aquele de plástico, batem palmas para o comandante e para si próprias, pego o celular como se pudesse ligar para o meu marido e contar o que se passou, guardo novamente e tento participar da euforia coletiva, estamos salvos, não vamos mais morrer, não é preciso escolher uma imagem do meu filho, de todo modo pego novamente o celular na bolsa, visito a galeria de imagens, navego pelos anos, melhor que eu escolha definitivamente uma imagem para não ter esse dilema quando a morte chegar, isso tornará mais calmos os meus últimos segundos na terra, ou no ar, ou em qualquer lugar, meu Deus, que voo tão longo." (pp. 63-4) - Trecho do conto Ainda estamos longe
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