O pai, as filhas e o pinto — um conto de Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony - Quinze Anos - Editora Nova Fronteira - 128 Páginas
Relançamento 2014 (publicado originalmente em 1965)
Uma antologia com deliciosos contos sobre a infância e a juventude. As narrativas, sempre bem-humoradas e sensíveis, descrevem o relacionamento de um pai e suas duas filhas, tendo como base fatos verídicos ocorridos com Regina Celi e Maria Verônica, filhas do primeiro dos seis casamentos do escritor. O livro deixa um sabor de saudade de uma época romântica na cidade do Rio de Janeiro, onde havia mais tempo e espaço para as coisas simples da vida, nem sempre "politicamente corretas", como comprar pintos na feira e fazer todas as vontades da filha mimada.
O pai, as filhas e o pinto
(Carlos Heitor Cony)
— Papai, se eu pedir uma coisa o senhor dá?
A primeira e mecânica vontade é dizer que dava. Mas resolve valorizar.
— Bom, quer dizer, depende...
— Não é nada do que o senhor está pensando. Não é roupa, nem doce, nem passeio, nem presente, nem faltar à escola...
— Então dou. Que que é?
— Um pinto.
— Pinto? Para quê?
A pergunta é imbecil. A menina quer um pinto, a feira da rua Júlio de Castilhos é imensa, na certa tem pintos.
— Mas onde você vai criar esse pinto?
— Deixa por minha conta. Boto na caixa em que veio o sapato novo.
Desce com a filha para bater a feira, que é complicada, sobe e desce por várias ruas, serpenteia por todo o Posto 6. Não há pintos à venda. Há ovos e galinhas, mas falta o elemento intermediário. De repente, ouvem o barulho de pinto, vão atrás, guiando-se pelo ouvido, recebem esbarrões, tropeçam em sacolas, até que localizam o ruído: não é pinto, é um carrinho de feira cuja roda range feito um pinto piando.
Vão desanimar mas a filha se informa com o sujeito que está vendendo limões.
— Pinto? Só lá embaixo, depois da rua Raul Pompeia, com o Alfredo.
O Alfredo tem pintos. Vende-os num saquinho furado. A garota recebe o saquinho com brilho nos olhos, há emoção em todo o seu rosto, e carinho.
— Que legal, papai, ele está quentinho!
— Tem de dormir com luz.
— Luz? Para quê?
— Para esquentar o corpinho dele.
Os pintos são quentes — ele não sabia disso. E passam pela barraca que vende milho picado, há em grão, e quem vai picar o milho é ele. Cata o martelo, onde está a droga deste martelo? E as empregadas se alarmam com o repentino agregado que a casa recebe. A cozinheira cita cuidados a respeito de pintos.
Logo agora com o racionamento, deixar uma lâmpada a noite inteira acesa, isso vai dar bode. A garota recalcitra:
— Papai, enquanto eu vou à escola o senhor toma conta do pinto. Depois, deixa que eu cuido.
Felizmente, o pinto não dá trabalho, em seu pequeno mundo de papelão. A caixa de sapato veio a calhar, bastou fazer um furo "para o pinto respirar" explica a garota. Há milho picado lá dentro e o pinto comporta-se decentemente.
À tarde, a garota volta da escola. Confere a caixa de papelão com orgulho, o pinto continua vivo — o pai merece uma medalha.
— Papai, precisa agora botar a lâmpada.
Ele se esquecera da lâmpada. Vai aos guardados, cadê os fios? E a fita isolante? Espinafra a copeira que perdeu a chave de parafuso, mas afinal consegue montar uma geringonça que acende dentro da caixa de papelão.
— Pronto. De noite a gente acende.
E chega a noite. A garota quer dormir com o pinto ao lado da cama. Botam uma revista por cima, para a claridade não prejudicar a outra garota que volta e meia ameaça acabar com a raça do pinto na ignorância, apertando o gasnete.
E já está dormindo, é noite alta, quando alguém o acorda.
— Papai, estou com pesadelo, deixa eu dormir aí?
Afasta-se para o canto e deixa o melhor lugar para a filha. Quando se arrumam, ela se lembra do pinto.
— Papai, vai buscar o pinto.
Esbodegado de sono, lá vai ele aos esbarrões. Vê a luz mortiça da caixa, num safanão arrebenta a tomada, a geringonça explode, há um clarão, o curto-circuito azula o quarto. Mas o pinto continua ferozmente vivo, vivo e quente, suspenso nas perninhas magras.
Arrumam-se na cama os três, pai, filha e pinto. Dormem como podem. Quando acordam, já não há mais pinto. A filha menor afogou-o na banheira, "para ver se sabia nadar". Agora, o problema é evitar que a filha mais velha arrebente a cara da filha menor.
— Comprarei mais pintos, vou encher a casa de pintos, um milhão de pintos, mas fiquem quietas!
As meninas sossegam. Ele então vai, às escondidas, dar um bombom à filha menor, pelo benefício prestado.
A primeira e mecânica vontade é dizer que dava. Mas resolve valorizar.
— Bom, quer dizer, depende...
— Não é nada do que o senhor está pensando. Não é roupa, nem doce, nem passeio, nem presente, nem faltar à escola...
— Então dou. Que que é?
— Um pinto.
— Pinto? Para quê?
A pergunta é imbecil. A menina quer um pinto, a feira da rua Júlio de Castilhos é imensa, na certa tem pintos.
— Mas onde você vai criar esse pinto?
— Deixa por minha conta. Boto na caixa em que veio o sapato novo.
Desce com a filha para bater a feira, que é complicada, sobe e desce por várias ruas, serpenteia por todo o Posto 6. Não há pintos à venda. Há ovos e galinhas, mas falta o elemento intermediário. De repente, ouvem o barulho de pinto, vão atrás, guiando-se pelo ouvido, recebem esbarrões, tropeçam em sacolas, até que localizam o ruído: não é pinto, é um carrinho de feira cuja roda range feito um pinto piando.
Vão desanimar mas a filha se informa com o sujeito que está vendendo limões.
— Pinto? Só lá embaixo, depois da rua Raul Pompeia, com o Alfredo.
O Alfredo tem pintos. Vende-os num saquinho furado. A garota recebe o saquinho com brilho nos olhos, há emoção em todo o seu rosto, e carinho.
— Que legal, papai, ele está quentinho!
— Tem de dormir com luz.
— Luz? Para quê?
— Para esquentar o corpinho dele.
Os pintos são quentes — ele não sabia disso. E passam pela barraca que vende milho picado, há em grão, e quem vai picar o milho é ele. Cata o martelo, onde está a droga deste martelo? E as empregadas se alarmam com o repentino agregado que a casa recebe. A cozinheira cita cuidados a respeito de pintos.
Logo agora com o racionamento, deixar uma lâmpada a noite inteira acesa, isso vai dar bode. A garota recalcitra:
— Papai, enquanto eu vou à escola o senhor toma conta do pinto. Depois, deixa que eu cuido.
Felizmente, o pinto não dá trabalho, em seu pequeno mundo de papelão. A caixa de sapato veio a calhar, bastou fazer um furo "para o pinto respirar" explica a garota. Há milho picado lá dentro e o pinto comporta-se decentemente.
À tarde, a garota volta da escola. Confere a caixa de papelão com orgulho, o pinto continua vivo — o pai merece uma medalha.
— Papai, precisa agora botar a lâmpada.
Ele se esquecera da lâmpada. Vai aos guardados, cadê os fios? E a fita isolante? Espinafra a copeira que perdeu a chave de parafuso, mas afinal consegue montar uma geringonça que acende dentro da caixa de papelão.
— Pronto. De noite a gente acende.
E chega a noite. A garota quer dormir com o pinto ao lado da cama. Botam uma revista por cima, para a claridade não prejudicar a outra garota que volta e meia ameaça acabar com a raça do pinto na ignorância, apertando o gasnete.
E já está dormindo, é noite alta, quando alguém o acorda.
— Papai, estou com pesadelo, deixa eu dormir aí?
Afasta-se para o canto e deixa o melhor lugar para a filha. Quando se arrumam, ela se lembra do pinto.
— Papai, vai buscar o pinto.
Esbodegado de sono, lá vai ele aos esbarrões. Vê a luz mortiça da caixa, num safanão arrebenta a tomada, a geringonça explode, há um clarão, o curto-circuito azula o quarto. Mas o pinto continua ferozmente vivo, vivo e quente, suspenso nas perninhas magras.
Arrumam-se na cama os três, pai, filha e pinto. Dormem como podem. Quando acordam, já não há mais pinto. A filha menor afogou-o na banheira, "para ver se sabia nadar". Agora, o problema é evitar que a filha mais velha arrebente a cara da filha menor.
— Comprarei mais pintos, vou encher a casa de pintos, um milhão de pintos, mas fiquem quietas!
As meninas sossegam. Ele então vai, às escondidas, dar um bombom à filha menor, pelo benefício prestado.
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