Ugo Giorgetti - Era uma vez o futebol
Não me canso de constatar por aqui como o brasileiro domina a arte de escrever crônicas — esse inusitado casamento entre jornalismo e literatura — com uma habilidade singular para expressar opiniões sobre os mais variados temas, inclusive os mais complexos, em poucos parágrafos, de maneira leve e bem-humorada. Particularmente, quando o assunto é o futebol, poucos textos alcançam a dramaticidade e o impacto das crônicas de Nelson Rodrigues, que transcendem em muito a mera análise esportiva. Já na ficção, seja em contos ou romances, a influência do futebol não se faz tão presente, restringindo-se a algumas obras contemporâneas, como O drible de Sérgio Rodrigues ou A vida se ilumina de Tadeu Sarmento (ler resenha no Mundo de K).
A primeira parte de Era uma vez o futebol reúne uma seleção do próprio Ugo Giorgetti das crônicas que escreveu durante 16 anos ininterruptos (2004-2020) para a coluna "Boleiros", do Estadão, acrescidas de outras que escreveu para o site Ultrajano (2021-2022). Já a segunda parte traz um conjunto inédito de contos, os quais, assim como as crônicas, têm o futebol como inspiração inicial, mas vão além, explorando diversos assuntos. Tanto nas crônicas quanto nos contos, as narrativas são envolventes e marcadas por um forte apelo visual, refletindo a experiência do autor como roteirista e cineasta. Suas histórias constroem cenas em que o futebol se torna um pretexto para revelar emoções, conflitos e a complexidade das relações humanas.
"Tudo nele era singular e único, a começar pelo distintivo. Na maioria das equipes os distintivos eram e são de uma objetividade quase primária: as iniciais do clube em desenhos mais ou menos redundantes. Nesse time era diferente: uma única estrela dentro de um delicado escudo, a estrela solitária, só ela e mais nada. Nada que lembrasse o nome: Botafogo de Futebol e Regatas. A vocação desse time desde o distintivo parecia ser o impossível, o inalcançável, o extremamente distante. Era uma estrela tão alta, era uma estrela tão fria... Depois, mais diferença. As cores do Botafogo, como de muitíssimos times brasileiros, eram preto e branco. Mas enquanto os demais clubes usavam essas cores de maneira óbvia, isto é, combinação de branco ou preto na camisa, no calção e nas meias, o Botafogo estabelecia uma diferença sutil: as meias eram cinzas. O cinza das meias matizava o preto e o branco, dando algo de incrivelmente requintado nesse uniforme de outro modo prosaico. Meias cinzas, calções pretos, camisa em listras verticais pretas e brancas e a estrela solitária. Assim era o Botafogo. [...]" (p. 15) - Trecho da crônica "O Botafogo à espera do milagre"
Algumas das crônicas expressam a perda de prestígio do futebol nacional ao longo do tempo, ideia que o próprio título do livro transmite e que se repete em trechos como este: "Penso Às vezes que talvez seja melhor dar como encerrado para sempre o reinado do Brasil no futebol e não procurar mais por seu ressurgimento." (A pergunta se repete, p. 248) No entanto, a magia que apaixona gerações é a garantia de que esse futebol imaginário, como aquele visto apenas pelos antigos narradores de rádio, permanecerá para sempre: "No tempo do rádio havia um futebol imaginário, visto só pelo narrador. Ou por outra, aquele que o narrador transmitia, frequentemente inventado, embelezado, transfigurado pela sua criatividade." (A era do rádio, p. 249)
"A invenção mais diabólica de quem elaborou as regras do futebol foi o segundo tempo. Consigo imaginar ingleses reunidos, discutindo as características do jogo que inventavam e, de repente, algum homem de teatro, algum dramaturgo ou ator infiltrado no meio deles, sugere o segundo tempo. Por que uma partida devia terminar sem que houvesse chance de ela mudar completamente, das coisas virarem outras, da surpresa se fazer presente, como na vida, como nos palcos? Por que não dar ao vencido a chance de se transformar em vencedor, e o vencedor decair de sua glória provisória? Certamente foi esse hipotético homem de teatro, com seu gosto inglês pelo drama, que criou isso que atormenta até hoje a nós torcedores. Nada é mais perigoso do que um segundo tempo. Sobretudo em torneios como esse atual brasileiro, em que há um enorme equilíbrio entre equipes. Para a maioria dos torcedores, o fim do primeiro tempo é motivo de alívio e, ao mesmo tempo, de tormento. O alívio é seguido da pergunta fatal: com será o segundo tempo? Porque o segundo tempo é a hora em que as coisas mudam, em que a noite se transforma em madrugada e depois em manhã, em que o que parecia uma coisa vira outra." (pp. 196-7) - Trecho da crônica "O segundo tempo"
São tantas histórias fantásticas em que a realidade se molda à memória afetiva de cada torcedor — épocas sem a cobertura midiática de hoje e que, muitas vezes, sequer foram documentadas adequadamente, como a trágica final da Copa de 1950. Hoje, em contraste, temos uma quantidade absurda de câmeras e até o famigerado VAR, mas será que isso nos aproxima da verdade?: "Tenho lidado com câmeras há muitos e muitos anos. Se há coisas criadas especificamente para enganar são as câmeras, ou melhor, as lentes. Cinema por definição é mentira, ilusão e artifício. Câmeras foram feitas para dar a impressão de que você está vendo algo real, mas todos sabem que não é verdade. Ninguém, numa sala de cinema, acha que está vendo algo real, Nem em documentários a câmera capta a verdade. Todas as fotografias mentem e distorcem, umas mais, outras menos. Somos todos ficcionistas, inclusive fotógrafos e documentaristas." (Câmeras, ação! (p. 113)
"Quando eu quis saber quem era esse Tião sobre o qual se estava falando há horas, Adriano me levou até a parede do bar onde havia muitas fotos de times dispostas de maneira irregular e, parando diante de uma foto do Atlético Mineiro, apontou um dedo vagamente para a esquerda. Era uma foto do time feita logo após a conquista de algum campeonato. Havia quase vinte jogadores reunidos, mais técnico, massagista e dirigente. O dedo de Adriano oscilava perigosamente, apontando na minha opinião para três ou quatro jogadores ao mesmo tempo. Finalmente consegui que ele me indicasse precisamente Tião e confesso que fiquei um pouco desapontado. Tião era o menos nítido dos fotografados, o granulado sobre sua figura parecia mais acentuado, mas o que mais me chamou a atenção é que, não sei explicar por quê, tive a impressão de que ele tinha recuado proposital, estratégica e suavemente no momento do clique, até um ponto em que, embora de maneira quase milimétrica, tinha acabado por se colocar irrremediavelmente fora de foco. Era como se delicadamente ele se recusasse a dar-se inteiramente à fotografia. Estava ali, mas não estava totalmente." (pp. 322-3) - Trecho do conto "Reserva"
Sobre o autor: Ugo Giorgetti Cursou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) de 1963 a 1966 e começou a trabalhar com cinema fazendo filmes publicitários para a TV. Logo passou também a realizar documentários e longas metragens de ficção, criando em 1995 sua própria produtora, a SP Filmes (SP). Giorgetti foi sócio do diretor e ator Antonio Abujamra no lendário TBC - Teatro Brasileiro de Comédia entre 1980 e 1984. Foi também conselheiro da Associação de Amigos do Centro Cultural São Paulo e da Cinemateca Brasileira. Durante 16 anos foi colunista dominical do caderno de esportes do Jornal O Estado de São Paulo. Alguns de seus outros filmes são: "Festa" (1988), "Sábado" (1994), "Cara ou Coroa" (2010), "Uma noite em Sampa" (2013), "Dora e Gabriel" (2020).
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