Rubem Fonseca - Histórias curtas
Esta coletânea de 38 contos extremamente breves oferece uma boa oportunidade para revisitar o estilo de Rubem Fonseca (1925-2020) que marcou a literatura brasileira a partir dos anos 1970 com temas considerados imorais e violentos para a época, sempre em um contexto de crítica social. Embora aqui a qualidade das narrativas seja bastante irregular e alguns contos pouco desenvolvidos, o livro surpreende em alguns momentos, reafirmando o talento do autor na construção de histórias curtas e brutais, como as imortalizadas em "Feliz Ano Novo" e "O Cobrador". Nesta obra, a loucura assume um papel central, evidenciando mais um fator na marginalização dos protagonistas — figuras que lutam para sobreviver em uma sociedade cínica e violenta.
Narradas em primeira pessoa, com frases curtas e linguagem coloquial, as histórias buscam construir personagens realistas, sem qualquer julgamento ético ou moral. O autor limita-se a apresentar a realidade da natureza humana crua e sem retoques, um traço marcante de sua literatura, assim como a presença constante do cenário carioca. Em "Coma", por exemplo, a sede de vingança impulsiona o protagonista, que, após se recuperar no hospital, decide visitar o agressor que lhe disparou dois tiros no peito: "'A tua pontaria é uma merda', eu disse, dando um tiro bem no meio dos cornos dele. eu sabia que o puto estava morto, mas mesmo assim fiz outro rombo na cabeça dele. Dois tiros pra ficarmos quites. Saí. Onde estaria a mulher dele? Eu gostava dela."
"Agora meu nome é José João. Ando pelas ruas, procurando. Sim, fugindo também. Não vou dizer o que estou procurando, nem de quem estou fugindo. Só posso dizer que procurei nas ouriversarias, na loja de bolsas, nas latrinas, nos parques, nos carros estacionados nas ruas, nas cestas de mercadorias dos supermercados, nos carrinhos de pipoca. / Encontrarei o que procuro? / Eles que me procuram encontrarão? / Às vezes sinto como se estivesse desmoronando. Fico um tempo desmantelado, sentado num banco da praça. As praças existem para isso. Bancos e estátuas e plantas. Árvores. Procurei nos galhos. Nem passarinho encontrei. / Sentado na praça? Eu devia estar maluco, na praça eles me achariam, eles não desistem, eles com aquela roupa branca parecem uns fantasmas. [...]" (pp. 21-2) - Trecho do conto "Eles"
A decadência humana, tanto na alma quanto no corpo, é um tema bastante explorado nesta coletânea. O autor aborda a perda da sanidade mental em contos como "A luta contra o preconceito racial", "Eles" e "Incorpóreo"; a velhice em "Netinho querido", "O mundo é nosso!" e "Cem anos"; e até mesmo questões ligadas ao excesso de peso, como em "O reencontro", "Regime" e "Olhares e Sussurros". Além disso, o submundo do crime é um dos elementos centrais da literatura de Rubem Fonseca, que desenvolveu um estilo policial único. Suas narrativas revelam a complexidade das relações entre policiais e bandidos, tornando difícil distinguir os verdadeiros vilões, o que reflete a ambiguidade moral da sociedade retratada em suas obras.
"Eu não era muito perspicaz em relação ao meu entorno. Isso começou a mudar quando minha perna foi amputada. Sem perna passei a ver melhor, a entender tudo que havia em volta de mim. Dizem que isso acontece, é normal, quando você perde um sentido os outros ficam mais aguçados, cegos ouvem melhor, mas que diabo a perna, que serve para locomoção, a ver com a visão e a inteligência, que ajudam a entender as coisas? / Meu nome é Antonio. Quando perdi a perna perdi o emprego. Eu trabalhava num banco como vigilante. Ficava na agência bancária fingindo que vigiava, mas na verdade não fazia porra nenhuma, ficava dormindo de olho aberto. É muito bom esse truque: você fica aparentemente acordado, um sujeito de olho aberto tem que estar desperto, mas na verdade está dormindo. Um sono leve, se alguém lhe dirige a palavra você acorda imediatamente e diz: Sim? [...]" (pp. 51-2) - Trecho do conto "O amputado"
Entre os destaques do livro, "Bola ou búrica" se sobressai como um dos melhores contos, narrado por um menino de 13 anos que joga bola de gude no subúrbio do Rio de Janeiro. Em pouco mais de duas páginas, Rubem Fonseca demonstra seu estilo potente ao desenvolver temas recorrentes em sua obra: a perda da inocência, a desigualdade social e o amor inacessível. O conto sintetiza a crueza de sua escrita, como no trecho: "Fui procurar o seu Eleutério, o cara que fornecia a maconha ao meu pai. Disse a ele que enquanto o velho estivesse em cana eu ia vender a erva no lugar dele." Um livro que, mesmo pecando pelo acabamento de algumas histórias, apenas esboçadas e não totalmente desenvolvidas, serve para a matar a saudade deste mestre que influenciou o trabalho de tantos outros escritores contemporâneos brasileiros.
"É difícil achar bolas de gude. Todo mundo mora no asfalto, a cidade está uma merda, não existe mais chão de terra. / Mas, falando da bola de gude, o único lugar que vende é a loja do seu Pereba. A gente quando fala com ele chama o Pereba de Pereira, mas ele é conhecido como Pereba, e não gosta de ser chamado assim, fica furioso. Pereba é uma espécie de sarna, uma coisa que dá na pele e parece que não tem cura, e o pior é que pega, e o Pereba tem essa coisa, ninguém pode encostar nele, por isso o Pereba nunca casou, e se isso por um lado é bom, pois toda mulher casada é um pentelho, menos a mãe da gente, é claro, por outro é ruim, pois o Pereba não consegue ninguém para afogar o ganso. [...]" (p. 83) - Trecho do conto "Bola ou búrica?"
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