Luiz Vadico - Desconforto

Litaratura brasileira contemporânea
Luiz Vadico - Desconforto - Editora Labrador - 144 Páginas - Capa: Amanda Chagas - Lançamento: 2024.

Aos poucos, revela-se o verdadeiro sentido do título desta coletânea de contos de Luiz Vadico. É impossível evitar o desconforto crescente que nos invade ao acompanhar personagens mergulhados em situações de violência e crueldade, expondo o lado mais sombrio da natureza humana. Essa sensação se intensifica quando a maioria das narrativas é inserida no cenário das festas natalinas — época associada à união e afeto entre os chamados semelhantes — para desnudar comportamentos socialmente aceitos que, na verdade, revelam hipocrisia e preconceito. O autor evidencia, com crueza que normalmente preferimos ignorar, como os excluídos, por sua sexualidade ou condição social, são destinados à solidão, mesmo sob o contexto festivo da celebração.

Com ironia e um humor que por vezes nos desconcerta, Luiz Vadico conduz suas narrativas com notável domínio de ritmo e tensão, além de diálogos precisos, como em um dos contos que melhor expressa o espírito da coletânea, O Natal de Brad Pitt, no qual um Papai Noel é contratado para surpreender as crianças de um orfanato na madrugada natalina. O plano, inicialmente bem-intencionado pela irmã Dirce, fracassa de forma brutal: o profissional, por ser negro, causa estranhamento nos pequenos órfãos que, após um julgamento sumário, o submetem a uma sessão de tortura cujos desdobramentos são tão imprevisíveis quanto perturbadores.

"Brad Pitt, seu nome era Brad Pitt. Menino de cabelos loiros espetados, parecendo de palha. Escutou no corredor a conversa da irmã Das Dores com a irmã Dirce. O Natal deste ano seria diferente. Irmã Dirce, por detrás dos seus grossos óculos de aros pretos, sugerira que o Papai Noel viesse de madrugada ao orfanato Santa Luzia. Assim as crianças seriam surpreendidas, como quando ela fora uma menininha. A ideia foi aceita, estranhamente sem nenhuma discussão. Sem que notassem, o menino magrinho, branco, de olhos imensos e azuis, catou a frase no ar e sem demora foi avisar aos outros. Do alto dos seus oito anos, Brad Pitt era um dos mais ativos dali. Colocaram-lhe alguns rótulos típicos: hiperativo, com déficit de atenção, endiabrado etc. Já haviam concordado entre si que na vida ele só seria loiro. Fora irmã Assunção, uma amante de cinema, quem lhe dera o apelido. Assim como aos outros meninos. — é para eles se sentirem importantes! — dizia." (pp. 11-2) - Trecho do conto O Natal de Brad Pitt

Já no ótimo Um fato novo no natal, o autor imagina um futuro incerto em que a humanidade finalmente resolve o dilema da crueldade envolvida no abate e processamento de animais. A indústria alimentícia passa a utilizar uma nova matéria-prima para a produção de carne, poupando os animais, afinal, inteligentes e sensíveis. No entanto, a solução traz consigo um dilema ético perturbador: os chamados humanoides, seres criados desde o nascimento com o único propósito de serem abatidos aos vinte anos, sem dor, e transformados em alimento. A narrativa se torna ainda mais provocadora quando o frigorífico onde trabalha o protagonista decide abater filhotes, premiando cada funcionário com um espécime para a ceia de Natal.

"Era doloroso ver o destino daquelas criaturas recentemente mortas. O sangue ainda estava quente, as carnes ainda estavam quentes. Quando chegavam em suas mãos, ele tinha de desmembrar. Ficava em uma parte não muito complicada, os membros baixos. Outros ficavam com partes mais difíceis, como remover os membros superiores, picá-los; outros abriam as carnes e delas retiravam as vísceras, que eram muito apreciadas. Estas eram colocadas em grandes caixotes de metal que seriam levados para outra esteira na qual trabalhavam com esse material. Levy não suportava a aparência das vísceras e nem o seu mau cheiro. Algumas tripas se furavam e fezes se misturavam com os bofes no caixote. Não tinha problema, pois tudo seria lavado e esterilizado várias vezes até o final do processamento. / Como confessara à esposa, só dois horrores eram piores do que o abate: o tonel no qual as cabeças eram jogadas, antes de seguirem para o descarte, feito por mulheres. Centenas de cabeças, lisas, sem pelos, com olhos arregalados, outros fechados e as bocas sempre abertas, algumas com a língua de fora, e tudo temperado por resquícios de sangue. Ficavam te olhando como se você fosse culpado pela vida e pela morte. Ele já assumira há muito tempo que era apenas um reles funcionário." (p. 40) - Trecho do conto Um fato novo no Natal

A questão da homofobia e do preconceito contra a diversidade sexual atravessa vários contos da coletânea, como Cara de anjo, Desconforto, Entretanto...Pietá e Três histórias de pai. Cada uma dessas narrativas, a seu modo, revela o quanto ainda estamos distantes de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Luiz Vadico não suaviza os conflitos, expõe a violência física e subjetiva à qual os personagens são submetidos e excluídos, escrevendo com coragem sobre temas sensíveis que muitos preferem ignorar ou silenciar. Dessa forma, desafia o leitor a questionar os limites éticos, tentando entender o seu próprio desconforto como ferramenta de reflexão e, por que não, em um possível exercício de empatia.

"E, enquanto olhava para a vela de Natal que acendera, cuja luz recaía sobre o peru, na realidade um minúsculo frango defumado, sentia-se triste. Gostava de comemorar o Natal quando era adolescente, mas a família fizera a data se transformar em algo amargo e desprezível. Longe de casa, sempre longe, não tinha mais motivo para comemorar. Entretanto, agora, quando não tinha mais pais, irmãos ou parentes próximos, e estava a alguns quarteirões da Cracolândia, sentiu uma necessidade aflitiva de comemorar o Natal. Talvez, numa sede humana, deveras humana, da presença de Deus, sendo trazida pelas doces recordações da infância. Olhava para o brilho amarelo da vela com uma estranha vontade de chorar. Não acendera nenhuma outra luz, pois o lugar era pequeno, e uma vela dava bem conta dali. Achou triste ser tão sozinho mas não achou que houvesse outra solução. Desde o HIV as coisas pareciam ter perdido o sentido." (p. 86) - Trecho do conto Entretanto...

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Luiz Vadico nasceu em Itápolis/SP em 1967. Formado em história, com ênfase em Religião e História da Arte, Mestre e Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi na Unicamp a par de sua produção acadêmica, que descobriu as possibilidades do conto, da poesia e da crônica. Premiado em concursos literários, publicou "Maria de Deus" (1999), "Memória Impura" (2012), "Noite Escura" (2013) e Fábulas Cruéis"" (2016). Vadico também se destacou com "O Moinho que derrotou Dom Quixote" (2022).

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