Gustavo Alkmin - A culpa deve ser do sol

Literatura brasileira contemporânea
Gustavo Alkmin - A culpa deve ser do sol - Editora 7Letras - 240 Páginas - Lançamento: 2025.

A coletânea de contos A culpa deve ser do sol de Gustavo Alkmin reúne alguns personagens que representam o que há de melhor e pior na condição humana. Muitos deles são figuras comuns, facilmente reconhecíveis no cotidiano dos grandes centros urbanos — pessoas envolvidas com seus amores e sonhos, mas também dominadas por preconceitos, raiva e frustrações diante de uma desigualdade social persistente. Essa desigualdade tem raízes profundas no racismo estrutural, que se manifesta não apenas na esfera econômica, mas também no acesso desigual aos serviços públicos, especialmente à segurança e à justiça. O autor critica ainda com amarga ironia o absurdo das narrativas políticas contemporâneas, distorcidas a ponto de normalizar a violência de gênero, da qual as mulheres seguem sendo as principais vítimas.

A coletânea se organiza em três partes — O cálice amargo, O mistério e A procissão — que agrupam os contos em unidades temáticas semelhantes. Na primeira seção, predominam narrativas de teor violento, marcadas por temas atuais amplificados pela polarização política recente. O racismo, por exemplo, se manifesta na brutalidade policial retratada em Cores vivas, enquanto a barbárie popular ganha forma em uma cena de linchamento no conto que empresta o título ao livro — um retrato perturbador de até onde podemos chegar em nome da pátria, da religião e da família. Em Fotografia em branco e preto, a violência contra a mulher é abordada, revelando uma tragédia cotidiana: a violência doméstica que a sociedade prefere ignorar — seja por egoísmo, comodismo ou pura alienação.

"[...] O menino tropeça e cai. Ofegante, Edgar confere o corpo sem camisa, costelas à mostra, grosseira queloide no ombro direito. Negro retinto. Os perseguidores cercam o guri. Ladrãozinho de merda!, berra uma mulher de jeito esnobe, bolsa de marca e maquiagem pesada. Preto-filho-da-puta!, grita um grandalhão engravatado. Porrada nele. Pra aprender! Precisa aprender! Bate! Bate! — são muitos berrando. Um cara musculoso, destes que chamam pitboy, dá um bico na barriga do garoto. Soma-se a ele um rapaz de regata, cruz tatuada no braço e chute potente. Outro homem, magricelo e bexiguento, pisa com seu sapato de couro na cara do moleque. Que pede pelo amor de Deus. Pede para parar. Para não baterem. Insiste em chamar por Deus. Outro chute. Agora nas costas. E mais outro. E outros chutes. Pontapés violentos. Do sujeito grisalho e semblante calmo, do barrigudo desajeitado, do careca barbudo. Chutes. Agora na cara. Vê-se sangue. No nariz, na boca. O menino chora. Sua bermuda está molhada. Fez xixi. Zombam dele: agora tá com medo, né, pivete dos infernos. Mijão! Tá com medinho, filho de uma puta? O magricelo contorce as bexigas do rosto para encher a boca e, entre cuspes, soletrar alto: fi-lho-de-uma-pu-ta." (p. 55) - Parte I - O cálice amargo - Trecho do conto A culpa deve ser do sol

Já na segunda parte, o tom das narrativas se torna mais introspectivo e suave, revelando personagens mergulhados em suas reminiscências sobre a vida e o passar do tempo — como em Um instante maestro! ou no conto Um dia de manhã, talvez inspirado por Raul Seixas, em que o protagonista, diante do espelho, reconhece que deveria estar contente, satisfeito, realizado, mas não parece estar. Reflexões com as quais muitos leitores de meia-idade certamente irão se identificar. Essas memórias podem alcançar episódios específicos da infância que jamais foram esquecidos, como em Talvez, quem sabe, o inesperado faça uma surpresa. Nesta seção, há também espaço para o amor, presente em contos como Carmozina, O encontro e Sextou!, cada qual a seu modo explorando os encontros e desencontros dos relacionamentos afetivos.

"Estivéssemos num filme, e não num conto, caro leitor, haveria agora um corte da cena e a câmera passaria a mostrar uma arma. Imaginemos o mesmo. Um rifle. Pequeno. Brilhoso. Melhor observando, uma pequena espingarda. Não parece de verdade. Talvez seja de brinquedo. Mas há uma mira. Que mira no pássaro. Um passarinho. Há, também, um dedo no gatilho. Rígido. Vê-se claramente que, embora pareça de brinquedo, a espingarda é de chumbinho. Ora, se há chumbo, pode haver explosão; logo, o leitor arguto, a esta altura, já deve ter concluído que não é nada de brinquedo a arma. E que não estamos diante de uma brincadeira. Contudo, poderia ser: é um menino que empunha a espingarda. E mira o passarinho. Ambos, menino e pássaro, quase imóveis. Os olhos do menino parecem frios e obssessivos. Gélidos como os olhos do pistoleiro calculista na hora do duelo, naquele antigo faroeste macarrônico. Movem-se lentamente. Os olhos. Fixam-se na ave. Buscam a melhor posição. Uma gota de suor brota da testa do menino. Os olhos do passarinho são aprazíveis e misteriosos. Também se movem lentamente. Firmam o horizonte, não veem o menino. Nem a espingarda. Com exceção dos olhos, menino e pássaro não se mexem. Silêncio ao redor. Silêncio no ar. Silêncio... Bum! Um estampido seco. O passarinho cai no chão." (pp. 117-8) - Parte II - O mistério - Trecho do conto Talvez, quem sabe, o inesperado faça uma surpresa

A parte final da coletânea foi, para mim, a mais marcante, com narrativas bem-humoradas — ainda que, por vezes, carregadas de um humor ácido. Em A dor da gente não sai no jornal, por exemplo, o protagonista despreza o amor de uma jovem modesta por puro preconceito linguístico: “[...] ela escrevia-lhe medíocres bilhetes de amor recheados com clichês extraídos da internet.” Arrepende-se no final, mas não muito. Já no excelente A mãe de santo, é impossível não lembrar de Nelson Rodrigues ao conhecer Oswaldo, personagem que recorre a expedientes do além para conseguir uma promoção e conquistar o coração de Carmen, sua amada. O livro se encerra com o sensível Salomão, o barbeiro, uma história de vida simples e verdadeira — talvez por isso mesmo nos emocione tanto. E esse é, afinal, o papel da literatura.

"Ali, o velho homem olhou-se no espelho. Embora fosse parte do seu instrumento de trabalho, custava a olhar-se no espelho. Alisou os ralos e raros cabelos brancos, o bigode fino. Surpreendeu-se com a quantidade de rugas. Voltou-se para uma revista de moda que alguém deixara por ali. Observou os ousados topetes. Os penteados conforme o tipo de cabelo, se cacheados ou lisos. Barbas desenhadas. Franjas unissex. Pegou a tesoura e, deslizando-a agilmente no ar, simulou cortes. Porém, na sua imaginação, voltava-se sempre para os tradicionais. De olho nas fotos, forçava-se ao moderno — sem êxito. Pôs-se a suar com tantas mímicas. Viu-se projetado na sombra da parede. Na solidão do salão. Vacilante, sentiu as mãos tremerem. Nada mais se perguntou. Naquele dia, Salomão demorou além do normal no bar, a esta altura gerenciado pelo filho do falecido Toledo. Ao chegar em casa, diante da dopa preparada por Maria, anunciou que não iria mais cortar o cabelo dos netos. O tempo passa, minha velha. Ela apertou a sua mão. Salomão, na gélida cozinha, olhava para o infinito. Não havia vivacidade naquele olhar. Maria o abraçou como há muito não fazia." (p. 235) - Parte III - A procissão - Trecho do conto Salomão, o barbeiro

Literatura brasileira contemporânea

Sobre o autor: Gustavo Alkmim é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região/RJ, mestre e doutor em Literatura e Estudos Culturais pela Puc-Rio. Seu livro de estreia, “O futuro te espera” (Editora 7 Letras, 2021) ganhou o primeiro lugar no Prêmio Rubem Fonseca, categoria Contos, no Concurso Internacional UBE – União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro em 2023.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar A culpa deve ser do sol de Gustavo Alkmin

Comentários

pausado tempo disse…
Gustavo está melhor a cada livro. Obrigada pela leitura, querido Alexandre

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