Vitor Miranda - Os ratos vão para o céu?

Literatura brasileira contemporânea
Vitor Miranda - Os ratos vão para o céu? - Selo Neomarginal - 156 Páginas
Ilustrações de Fernanda Bart - Projeto gráfico: Iris Gonçalves - Lançamento: 2025.

A capa e o título deste lançamento de Vitor Miranda podem induzir à falsa impressão de que se trata de uma obra voltada ao público infantil. Mas essa é apenas a primeira das muitas ironias e contradições com as quais o autor desafia e desconcerta o leitor ao longo desta coletânea de textos que, na ausência de uma definição mais precisa, chamaremos de contos. Embora crianças apareçam como protagonistas e narradores, o que se revela é um humor mordaz e temas brutais que apresentam a perda precoce da inocência e a perversidade da condição humana. Especialmente em tempos em que a primeira fala de um bebê pode não ser “mamãe” ou “papai”, mas simplesmente “Google”, como sugere o conto de abertura.

Como bem destaca Xico Sá em seu ótimo prefácio: "Este livro está repleto de assombros que reverberam lá do começo da vida. Os assombros que ficam para sempre. E viram ficção, conto, sapo ou fábula." É exatamente isso que Vitor Miranda realiza: transforma seus fantasmas — e os nossos — em narrativas que incomodam e fazem pensar. São histórias que mostram, por exemplo, um menino de nove anos identificando o sofrimento de um ser vivo no momento de sua morte, no conto que empresta o título ao livro. Afinal, nós e os ratos vamos para o céu? Difícil de acreditar quando lemos no conto "A primeira vez", um episódio de assédio sexual cuja vítima, também uma criança, carregará o trauma por toda a vida.

"ouvi um barulho lá embaixo. eram ratos. eles habitavam a sala. viviam no forro da estante. faziam barulhinhos inconvenientes. a gente não poderia deixar quieto. meus pais armaram um plano. compraram uma ratoeira. daquelas ratoeiras gaiolas. o rato entra pra comer o alimento e nunca mais sai dali. acho que foi o que aconteceu comigo nessa vida. entrei pra comer um queijo e nunca mais saí. adoro queijos. os ratos nem tanto. o problema é ficar preso neste mundo cruel. naquela época ainda não entendia a maldade do ser humano. nem sabia que existia. pensando bem agora, na escola, a cada dia uma pessoa era escolhida para ser o rato. na verdade os ratos eram sempre os mesmos e não existia esse negócio de bullying. já fui rato e sei como é. já ouvi histórias de ratos que se mataram por aí. cansaram de ser cobaias de piadinhas maléficas e desapareceram do colégio. foram parar num rio sujo feito uma ratazana ou se mataram por causa de um queijo. como se o queijo fosse a paz que eles procuravam. enquanto existir seres humanos vivos não haverá paz." (p. 39) - Trecho do conto "Os ratos vão para o céu?"

Um dos melhores contos é "Jesus te ama", impossível de destacar apenas um ou dois parágrafos porque é encadeado por um longo diálogo entre dois personagens que são atendidos em um restaurante especializado em costela no bafo. A identificação da rede Wi-Fi é "jesus te ama" e a senha "oraçãodededeus2024". No entanto, o filho do proprietário, chamado Isaque, trabalha servindo as mesas com uma arma de brinquedo e sonhando matar todos os clientes, assim como o próprio pai. Em contraste, Iorv oferece uma narrativa mais leve, embora igualmente reveladora. A história é contada pela voz de uma menina que observa, com curiosidade e estranhamento, as relações afetivas dos adultos ao seu redor: "ele e mamãe pareciam se gostar muito, ficavam se beijando de um jeito esquisito. diferente do jeito que eu beijava mamãe."

"era uma tarde de julho. férias escolares. nós, as crianças, estávamos brincando pelo prédio. eu tinha por volta de dez ou onze anos, não me lembro bem. mas a situação em si lembro até hoje. a cena me vem à mente todas as noites quando me deito no escuro do quarto. os detalhes e todos os sentimentos que se acumularam durante toda a minha vida. a vergonha que sentia quando ouvia piadas homofóbicas perto de mim no colégio ou quando na TV da sala passava alguma notícia referente a isso. / esconde-esconde. corri pra me esconder na escada do bloco C. alguém abriu a porta quando me aproximei. ficamos frente a frente. ele me fez um gesto com a cabeça pra entrar. pediu silêncio com o indicador em frente aos lábios e subimos um lance de escadas. ele segurava minha mão. abriu o zíper da calça e colocou o pau pra fora. estava duro. colocou minha mão nele. ia me falando pra fazer coisas e eu ia fazendo." (p. 93) - Trecho do conto "A primeira vez"

Uma das marcas do autor são as narrativas velozes que envolvem o leitor desde o início até o final, principalmente sustentadas por diálogos afiados e bem construídos.  No conto que encerra o livro, duas senhoras conversam tranquilamente em uma padaria, até que uma delas observa, com dolorosa lucidez, que não há palavra para nomear quem perde um filho. É interessante notar como a literatura sempre encontra novas formas de contar histórias, tanto na forma quanto no conteúdo. Vitor Miranda é um autor que merece furar a bolha das ditas grandes editoras e do qual certamente ainda vamos ouvir falar bastante, muito recomendado.

"odeio essa resposta 'não sei'. as pessoas sempre falam 'não sei' quando a resposta é triste. Iorv ficou um bom tempo sem aparecer. até que um dia apareceu do nada. era dia de folga de mamãe e a gente estava assistindo um desenho japonês. mamãe foi ver quem era e voltou pra pegar a chave com o sorriso nas orelhas. disse que era Iorv. eu continuei assistindo o desenho. ele me deu oi pela porta e ficou no quintal. ele e mamãe ficaram conversando. ele jantou com a gente e rimos um monte. mamãe disse pra eu escovar os dentes e ficar assistindo desenho na cama pra eles conversarem. eles ficaram horas no quintal. Iorv estava bem sério, mas não fumava cigarros. eu puxei a cortina de lado e fiquei na fresta olhando e torcendo pra que algo mágico acontecesse naquela noite ao pé da pitangueira. queria ver mamãe feliz, Iorv feliz e queria ficar feliz. eles levantaram e se abraçaram bem forte e ficaram ali durante muito tempo que até a pontinha do meu pé começou a doer. e eu esperando aquele beijo que mamãe nunca quis me dar, e que da fresta entendi que aquele beijo é coisa de adulto, de adultos que se amam, que ficam felizes quando se encontram. aquele beijo que eles não deram." (p. 144) - Trecho do conto "Iorv"

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Vitor Miranda é poeta e escritor paulistano com vivências pelo Paraná e Minas Gerais. Atualmente se divide em São Paulo e Valinhos. “Os ratos vão para o céu?” é seu sétimo título lançado. Entre poemas e contos, e o romance experimental “A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty”. É poeta e letrista da Banda da Portaria, projeto que nasceu para musicar os poemas de seu livro “Poemas de amor deixados na portaria” e ganhou vida. É parceiro em letras e canções de artistas como Alice Ruiz, Rubi, Touché, João Sobral, Luz Marina, Zeca Alencar e os porteiros João Mantovani, Binho Siqueira e Arthur Lobo. Também faz parte como letrista do Margaridáridas, projeto de sua parceria com o músico paranaense, Eduardo Touché. Criou em 2019 o videocast de poesia Prosa com Poeta, no qual entrevistou diversos artistas como Alice Ruiz, Maria Vilani, Bob Baqq, Daniel Perroni Ratto, entre outros. É criador e líder do Movimento Neomarginal, grupo artístico vivo que tenta vencer as amarras do mercado artístico misturando artistas de diferentes níveis (sociais) de público nos mesmos eventos.

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