João Matias - Os interiores

Literatura brasileira contemporânea
João Matias - Os interiores - Editora Patuá - 162 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação: Alessandro Romio - Lançamento: 2025.

O mais recente lançamento de João Matias, após duas incursões bem-sucedidas no gênero dos contos, é um romance distópico que provoca inquietação no leitor — não apenas pela força da trama, mas pela perturbadora semelhança com episódios recentes da política nacional e com os crescentes colapsos ambientais. Ambientado em pleno sertão nordestino e estruturado com a dinâmica de um road movie, a obra retoma temas recorrentes na literatura regional, ao associar crises climáticas e sociais no Nordeste a questões contemporâneas, com forte apelo visual e ritmo de roteiro. É nesse contexto que, na definição precisa da escritora Mylena Queiroz, a obra evoca “uma narrativa aos moldes de uma Rachel de Queiroz tarantinesca e pós-apocalíptica”.

O romance tem início com o assassinato do general Mauro Müller, considerado um herói da intervenção militar brasileira no Haiti, mas que passa a ser considerado traidor nacional pelas Forças Armadas ao não apoiar um golpe de Estado em curso. A execução, arquitetada em segredo pelos militares, é levada a cabo pela própria esposa, Tieta, que recebe a promessa de recuperar as terras ancestrais de sua família como recompensa. Após o crime, ela embarca numa jornada de carro pelos sertões, enfrentando não apenas os fantasmas do passado, mas também a ameaça crescente das voçorocas — erosões profundas causadas pela ação da chuva em áreas de vegetação escassa, que formam crateras capazes de engolir cidades inteiras.

"Tem algo de interessante e triste no ofício de matar maridos. Mesmo quando a poeira baixa, e o pano percorre os ladrilhos do piso ensopado de sangue, a adrenalina não passa. Você compara este ato com outras formas igualmente vis, igualmente sujas, igualmente espúrias e só um pouco menos dignas de se orgulhar. E claro, matar. Uma barata, um rato, uma mosca. E quando, numa manhã de segunda-feira, sentada no sofá, Tieta contempla o barulho dos engasgos que seu marido faz com uma faca atravessada na garganta, ela pensa que não é propriamente como se Frida Kahlo tivesse pintado um de seus autorretratos. Não é uma obra de arte. Soa apenas como um singelo estado de ânimo criativo seguido de um torpor igual ao de não conseguir desenhar mais do que um vaso de rosas. Mauro Müller não era uma obra de arte. E Tieta sabe. Estava mais para um lento e progressivo perder de forças num corpo gordo estendido num tapete persa que valia menos do que um quadro três por quatro em arte naïf. Um quadro daqueles que você encontra nas galerias do Hotel Globo em uma segunda-feira qualquer. [...]" (p. 11)

Além do colapso ambiental, Tieta precisará enfrentar o caos da violência dirigida aos retirantes que fogem da devastação das terras rasgadas. Essa legião de miseráveis famélicos — apelidada de “tortos” pelos militares — é formada pelos poucos sobreviventes que conseguiram escapar das voçorocas ou dos tiros que atingem, sem distinção ou piedade, mulheres, homens, crianças e até mesmo cachorros. Muitos acabam confinados em campos de concentração nas poucas cidades ainda habitadas, numa tentativa brutal de impedir que avancem rumo aos grandes centros urbanos em busca de comida.

"À frente, uma voçoroca em processo de expansão derruba as defensas metálicas da rodovia como se as estivesse comendo, e o barulho vindo do fundo dela se torna ainda mais intenso, faz tremer as estruturas do carro e o desestabiliza. A estrada, cuidadosamente ladeando a voçoroca, não se afeta. Ainda. Pois, como notam ao passarem ao lado dela, era questão de horas. [...] Mais alguns metros e eles veem mais uma vez a voçoroca comendo alguns metros de terra e uma família inteira, com mãe, pai e filhos, se atirando no buraco. O Ôm toma o carro. De vidros abertos, as rezas em voz alta são acompanhadas pelo som da voçoroca, como se o buraco respondesse ao clamor das gentes. Como se estivessem sincronizados. A voçoroca se estende por quilômetros e mais quilômetros. Uma extensão impensável de mensurar com olhos humanos. A paisagem é toda um grande, largo e infinito buraco: não se vê nada a não ser pessoas que, de mãos dadas, como num abraço às bordas, rezam em voz alta; os olhos fechados, lágrimas e vozes de desespero." (p. 81)

Não há inocentes entre os personagens que tentam, cada um à sua maneira, sobreviver em uma região que desconhece qualquer vestígio de humanidade. João Matias nos mostra uma visão sombria de como as ações descontroladas de desmatamento, associadas às mudanças climáticas, podem ser letais para o futuro — sobretudo quando esses efeitos são ignorados pelo negacionismo político. A natureza vem cobrar com violência o preço da negligência e da ambição, deflagrando a barbárie que preferimos ignorar. Um romance recomendado, rico em simbolismos, que incomoda e faz pensar como toda obra relevante de literatura deve fazer.

"Um a um, os tortos que se acumulam em frente à entrada de Brejo das Almas caem. As rajadas de tiros estraçalham o peito, a cabeça e as pernas deles. Já magros, às vezes os tiros não têm sequer o que matar. O banho de sangue toma a extensão do asfalto. Os corpos se acumulam aos montes pela estrada, pelas matas e pelas pedras do sertão. Poucos, pouquíssimos atiram pedras. As mães gritam, tentando proteger suas crianças; outras, porque seus filhos e filhas foram atingidos. Muitos correm. Desesperados. E são pegos com tiros nas costas durante a corrida. Bernardo e Tieta se escondem atrás do carro. A terra, que se apresentava mais amarelada pela presença da seca, ganha tons de vermelho. O sangue dos tortos já sai fervendo.Por mais que batessem em retirada, os tiros não cessam. Parecem não ter alvo. Para os atiradores, não passam de uma grande massa uniforme de bactérias a ser combatida com um antibiótico potente." (pp. 87-8)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: João Matias nasceu em Juazeiro do Norte (CE). É escritor, roteirista e professor na Universidade Regional do Cariri, Ceará. Tem publicados os livros de contos "As Madrinhas da Rua do Sol" (Caos & Letras, 2023), "Os Santos do Chão Bravo" (Caos & Letras, 2022), dentre outros, além de assinar roteiros de cinema e histórias em quadrinhos. Participou, com textos selecionados, de antologias de contos e prêmios literários, destacando-se a antologia "Sábado" (Clube do Conto da Paraíba), além de "Casa Encantada" (Arribaçã) e "Enterre-os bem fundo" (Triumphus). É co-autor do argumento do longa-metragem de horror brasileiro "O Nó do Diabo" (2017), premiado em festivais nacionais e internacionais. "Os Interiores" é seu primeiro romance.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Os interiores de João Matias

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