Sérgio Fantini - Graciosa
O escritor e poeta mineiro Sérgio Fantini pertence a uma geração pré-internet, em que os recursos de autopublicação e divulgação eram praticamente inexistentes, notadamente durante a década de 1970. Naquele período, os textos circulavam por meio de fanzines ou pequenas edições de baixo custo, datilografadas e mimeografadas — um formato que favoreceu o surgimento de produções originais e deu origem ao movimento conhecido como geração mimeógrafo, ou poesia marginal, assim chamada por se desenvolver à margem do mercado editorial tradicional. Mesmo hoje, Fantini mantém uma presença discreta nas redes sociais, e sua obra continua a ser divulgada principalmente por meio de amigos e admiradores.
Na primeira parte de seu mais recente lançamento, um romance publicado pela valente editora mineira Caos & Letras, acompanhamos a trajetória de Graciosa, uma adolescente negra de quatorze anos, moradora da periferia de uma grande capital, no fictício bairro Treze de Maio. Criada pelo pai aposentado, Raimundo, e pelo irmão mais velho, Jônata — ambos incapazes de mantê-la afastada das armadilhas que a cercam — Graciosa é atraída por situações de perigo muitas vezes disfarçadas sob uma aparência de diversão e prazer. Como tantas outras jovens em condição de vulnerabilidade, ela é tragada precocemente por uma espiral de sexo e drogas, que a conduz a experiências marcadas pela violência e pela perda da inocência.
"Houve a primeira noite em que Graciosa não voltou para casa. Sempre voltava. No começo, cuidava de não fazer barulho: o pai e o irmão dormiam; quando acordavam, ela estava na cama. Depois, relaxou: batia a porta da rua e acendia a luz da sala. O pai não falava nada, sabia onde aquilo ia dar. Às vezes, os dois já tomavam café — foram poucas, mas aconteceu. A reação imediata de Jônata foi se irritar - pelo pai, porque, por ele, a irmã era caso perdido. Seu Raimundo não andava bem de saúde. O filho se sentia responsável por preservá-lo. O velho foi obrigado a se aposentar, mas gostava do trabalho. Tinha orgulho de nunca ter passado nem uma semana desocupado; com a morte da mulher, a saúde foi dando lugar à tristeza e às doenças. E tinha recém passado dos sessenta anos. Por pouco não ficou deprimido. Jônata foi quem segurou as rédeas: inventava ocupações para o pai e cuidava da irmã caçula. Ele e a namorada, Dagmar." (p. 21)
Na segunda parte, o autor constrói um painel de narrativas inspiradas em pessoas em situação de rua. Sob a forma de relatórios elaborados pela Associação do Bairro para fins de cadastramento na prefeitura, dois personagens — Letsgo e Vivelinda — conduzem entrevistas que revelam os dramas ocultos por trás de cada uma dessas vidas excluídas. O texto de Sérgio Fantini é constantemente atravessado por sua alma de poeta, perceptível tanto na escolha dos nomes dos personagens (Wanslívia, Marichá, Tributino, Mijardina, Orquério, entre tantos outros) quanto no ritmo da fala coloquial das ruas — sempre com um olhar atento à credibilidade das vozes e situações retratadas.
"Graciosa não previu os riscos, como todas as garotas e garotos da sua idade; o Boi já ouvia vozes demais. Acendeu o baseado e deu um tapinha leve, moderado. Sua filha já estava de saída, não carecia de muito THC para se despedirem. Passou para graciosa olhando-a nos olhos e sorrindo, feliz porque estavam sozinhos de novo, mas ela traduziu o sorriso como uma declaração de amor, vá saber. Piscou, sorriu também e puxou um excesso de fumaça que a fez tossir. Ambos acharam graça. Ele massageou suas costas. Essa reaproximação física se transformou em um abraço, como, de alguma forma, esperavam. Ele, sentimental, por uma repentina saudade da filha; ela porque estava excitada mesmo, a Gracinha aflita. As marcas do tempo nas ruas não apagaram nem esconderam todas as características que o Boi trazia do berço. Isso fazia dele, para Graciosa, o homem mais diferente e especial com quem se deitaria. Até ali, foram todos jovens, maioria do bairro mesmo, um e outro branco, de fora. Ela não pensava isso sentindo o pau do Boi endurecendo, queria colocá-lo numa coleção, como um troféu: subversiva, rompia uma bolha social, seu corpo respondia a estímulos, seu coração afirmava sua independência da família careta. O rosto da mãe passou também pelos seus olhos fechados, mas ela não se importou: o Boi apertava seus seios e a deitava na cama." (pp. 60-61)
A construção dos personagens merece destaque pela originalidade. É o caso do pastor Ruanjarra, com seu sotaque portenho, fundador da Igreja do Sagrado Cajado Flamejante, sempre em busca de novos dízimos; ou do padre Dezêncio, que, embora siga a Teologia da Libertação e se posicione politicamente à esquerda, não consegue se desvencilhar da retórica da Igreja. Sérgio Fantini dá voz a essa legião de excluídos, figuras que representam uma desigualdade social enraizada no racismo estrutural, presente no cotidiano, ao lado de nossas confortáveis residências ou ao longo do trajeto para o trabalho, mas que, por conveniência ou indiferença, preferimos não ver.
"Dona Francisoréia é a prova de que as histórias dessas pobres pessoas se parecem muito, mas são diferentes entre si, exclusivas, assim como as próprias pessoas e suas vidas. Ninguém é igual a ninguém, mesmo no imenso conjunto de miseráveis, essa massa de cidadãos destituídos dos seus direitos das mínimas condições de sobrevivência que chamamos de 'pessoas em situação de rua'. Agora eu entendo isso, companheiro Jônata, depois de conhecê-las melhor, conhecê-las bem, bem demais até. Quando terminarmos o Cadastramento, elas estarão comigo até o fim dos meus dias. Antevejo que não conseguiria, mesmo se tentasse, deixá-las para trás, ali nas ruas da Capital: Como uma legião de fantasmas me assombrarão todos os momentos, me visitarão em sonhos, infestarão meus pesadelos e pensamentos. Não estou dizendo que serei infeliz para sempre, mas não serão a melhor companhia que uma jovem inocente como eu poderia ter." (p. 155)
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