Luigi Ricciardi - Fragmentos de uma ausência
O mais recente lançamento de Luigi Ricciardi é uma autoficção composta por fragmentos de memória, apresentados como notas em que o protagonista-narrador tenta exorcizar, pela escrita, os traumas de uma relação tóxica que desencadeou um processo depressivo. Ao longo da leitura, é inevitável que o leitor se pergunte onde termina a realidade e começa a ficção — embora essa distinção seja irrelevante para o contexto da obra. A estrutura concebida por Ricciardi funciona muito bem, sustentada por um ritmo bem-humorado e envolvente, com ares de roteiro cinematográfico, que instiga a curiosidade e promove empatia por um personagem nada confiável e, justamente por isso, profundamente autêntico em suas crises de autoestima.
O romance — na falta de definição melhor — é curiosamente dividido em capítulos nomeados com funções ou propriedades matemáticas, o que não deixa de ser irônico, já que não há ciência menos exata do que um relacionamento amoroso. Mesmo o termo “fragmento”, presente no título, pode ser interpretado de duas formas: (1) parte de um todo, fração; ou (2) pedaço de coisa que se quebrou, cortou, rasgou etc. Essa ambiguidade realça a originalidade da obra, onde conceitos tão distintos acabam convergindo no projeto literário de Luigi Ricciardi — que, desde 2018, mantém o canal Acrópole Livros no YouTube e Instagram, apresentando vídeos resenhas e listas de indicações de livros relacionados à literatura clássica e contemporânea.
"Aos quarenta e dois anos, apaguei as últimas fotos de Bê, que ainda insistia em manter no computador, dei o quadro que fiz com os quebra-cabeças que tínhamos montado juntos e vendi no sebo um livro que ela me deu. Com o dinheiro, comprei duas cervejas, acendi um incenso e fiz uma cerimônia particular de descarrego. Comecei a escrever este livro no intuito de ficar finalmente livre da imagem dela. Conseguiria?" (p. 11)
"Sempre fui tímido com as mulheres. Certa vez, na quinta série (eu acho), roubei dinheiro da bolsinha da minha mãe para comprar um pequeno estojo de maquiagem para uma menina da sexta série. Pedi para um amigo entregar. Ela gostou do presente e quis me ver, mandando recado, pelo amigo, com dia e horário marcado do encontro. Quando chegou o momento, fiquei atrás do muro, chorando porque não tinha coragem de ir encontrar a menina. Meus amigos riam e me chamavam de bicha." (pp. 13-4)
"Bê foi minha aluna em uma escola de idiomas para adultos. Eu me lembro perfeitamente de quando ela entrou na sala pela primeira vez. Mal sabíamos que, um ano e meio depois, estaríamos nos beijando em minha festa de despedida. Mais tarde, quando estávamos juntos, contei a ela que senti o relógio parar na tarde em que ela entrou pela primeira vez na sala. [...] Bê assumiu que queria ficar comigo antes que eu me mudasse para outra cidade. Ela tinha namorado, eu estava solteiro. Não a julguei." (p. 21)
"No início, Bê disse que tinha acabado de sair de um relacionamento e não queria assumir um compromisso tão cedo. A gente ia ficando como desse. Ela queria ter liberdade, e eu também podia ter a minha. Ela perguntou se estava tudo bem para mim. eu respondi que sim. Mas não estava. [...] Esse negócio de poliamor, relacionamentos abertos, trisal, é muito progressista pra mim. Me sinto um velho conservador quando ouço as novas gerações falando sobre isso. Acho que pode servir pra alguns, para mim foi cova funda." (p. 22)
Uma outra definição apropriada seria a de um romance de formação, já que acompanhamos a trajetória do personagem desde o primeiro beijo na adolescência até as experiências amorosas da vida adulta. Apesar das desventuras do protagonista — que enfrenta uma depressão profunda, acompanhada de transtornos alimentares — o livro é narrado de forma leve e até bem-humorada por Luigi, seja ele ou não o protagonista desiludido. Afinal, Como ele mesmo afirma em uma passagem: "Só não esqueçam de uma coisa: eu minto, eu minto muito" — mas não é essa a função de todo escritor de ficção?
Um lançamento muito recomendado, Fragmentos de uma ausência ganha ainda mais força graças à edição primorosa da Editora Mondru, que valoriza o conteúdo com um projeto gráfico bem projetado e elaborado por Jeferson Barbosa. A capa, a contracapa e as páginas iniciais exibem imagens desfocadas de um casal — com o rosto da mulher rasurado e o do parceiro borrado — com símbolos matemáticos sobrepostos que se espalham pela composição, inclusive definindo cada capítulo. O resultado é uma representação visual coerente com a proposta literária do autor. Fica a dúvida provocadora: seriam essas fotos do próprio Luigi Ricciardi?
"Este livro não tem a menor intenção de expor Bê ou julgá-la por atitudes que não considerei justas. Aliás, todo mundo acaba sendo filho da puta com alguém pelo menos alguma vez na vida. Esse livro é para que eu a exorcize de uma vez por todas e tente entender por que não tive amor próprio quando estive com ela. [...] Bê dizia 'eu te amo' em inúmeras oportunidades. Mas não queria me chamar de namorado por 'não me amar' o suficiente, então me apresentava como amigo. Chegou a falar em casamento e filhos. Será que me chamaria de marido, se chegássemos nessa fase? Ou só aí se convenceria a usar a palavra 'namorado'?" (p. 31)
"Bê se apaixonou por uma mulher e me deixou em uma noite fria de abril. Ela passara o final de semana na casa dos pais para refletir sobre a vida. Foi o que ela me disse. Bastou para me deixar tenso o final de semana todo, e eu já fui prevendo o que poderia acontecer. Foi numa segunda-feira. Almoçamos juntos, e, antes de eu voltar para o trabalho, ela me disse que gostaria de conversar comigo à noite - naquela época nós já tínhamos voltado a morar na mesma cidade. Eu saía meio tarde, falei que poderíamos conversar naquele momento mesmo. Ela disse que preferia que a conversa acontecesse à noite. Eu concordei e a abracei, perguntando 'ela beija bem?'. Bê respondeu que sim. Eu já previra!" (p. 43)
"Eu preciso deixar algo bem claro para vocês: eu menti, esse livro não é uma autoficção. Bê é cem por cento inventada, não tem nenhuma relação com a realidade, ou seja, ela é uma personagem de ficção. O problema é que eu sempre me apaixono pelas minhas personagens. [...] O que transforma a paixão em cem por cento verdadeira!" (p. 81)
"Ouvi dizer por aí que a autoficção é a presença da ausência e a ausência da presença. Você entendeu agora porque fui muito feliz em escolher esse título? Aliás, esse nem é um título meu, roubei de um amigo. Mentira, ele me cedeu. Fragmentos de uma ausência é sobre mim, como falei várias vezes. Foda-se Bê, isso aqui é uma autoficção que para em pé sem ela. [...] Vá embora, Bê, te inventei, mas não quero mais viver dessa invenção. O livro é sobre mim, eu me inventei." (pp. 88-9)
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