Salman Rushdie - Os filhos da meia-noite

Literatura inglesa
Salman Rushdie - Os filhos da meia-noite - Editora Companhia das Letras - 606 páginas - Publicação 2006 - Tradução de Donaldson M. Garschagen.

Salman Rushdie, o premiado escritor britânico, nascido na Índia e ameaçado de morte por uma fatwa iraniana, decretada pelo aiatolá Khomeini em 1989 em decorrência do romance "Os versos satânicos", recebeu em junho passado o título de Cavaleiro do Império Britânico por sua contribuição à literatura. Este fato desencadeou uma série de protestos no mundo muçulmano e ocasionou mais uma vez um antigo debate sobre a liberdade de expressão.

Este romance, publicado originalmente em 1980, ganhou no ano seguinte o conceituado prêmio de literatura em língua inglesa Booker Prize. Em 1993, este mesmo romance foi premiado com o título "Booker of Bookers Prize", conferido ao melhor livro publicado nos primeiros vinte e cinco anos desta premiação.

A história da Índia moderna, a partir de sua independência em 15 agosto de 1947, é a base do romance de Salman Rushdie que utiliza como fio condutor a troca de dois bebês, um de família hindu e outro de origem muçulmana, nascidos exatamente à meia-noite. Uma das crianças, Salim Sinai, o hindu pobre criado por engano numa rica família muçulmana, é o narrador do romance que, sempre em um clima de fantasia e humor, muitas vezes tragicômico, desfila uma série de histórias entrecruzadas apresentando as várias culturas e etnias que compõem a Índia. No entanto, este resumo de "Os filhos da meia noite " é tão insuficiente quanto dizer que "O novo testamento" trata da vida de Jesus.

A trajetória de Salim Sinai começa, para ser exato, na Caxemira durante a primavera de 1915 quando seu avô, o jovem e recém-diplomado dr. Aadam Aziz, bate com o nariz em um montículo de terra endurecida pela neve durante suas orações, é uma bela passagem e um exemplo representativo da prosa lírica de Salman Rushdie: "Três gotas de sangue saltaram de sua narina esquerda, endureceram instantaneamente no ar gelado e caíram, diante de seus olhos, transformadas em rubis, sobre o tapete de oração. Jogando o corpo para trás, até ficar com a cabeça novamente ereta, ele percebeu que as lágrimas que lhe haviam surgido nos olhos também tinham se solidificado; e naquele momento, enquanto desdenhosamente afastava diamantes dos cílios, ele decidiu que nunca mais voltaria a beijar a terra por nenhum deus ou homem. Essa resolução, criou um buraco dentro dele, um vazio numa câmara vital interna, deixando-o vulnerável às mulheres e à história."

O buraco que a fé deixou no interior de Aadam Aziz é preenchido posteriormente pelo amor à filha de um rico fazendeiro local. Ele é chamado para atender a uma consulta da jovem Nasim, com a condição de que o exame seja realizado através de um lençol com um pequeno círculo furado no centro, para que a pureza da jovem possa ser preservada. E assim, através de repetidas consultas, ao longo de três anos, e também de "uma colagem desconjuntada das partes inspecionadas aos pedaços", diga-se de passagem, cada vez mais detalhadas, ambos acabam se apaixonando e casando.

Esta é a origem da árvore genealógica que culminou, após duas gerações, no nascimento do protagonista trocado Salim Sinai (filho bastardo de um inglês). A união do casal Aziz irá gerar cinco crianças, as filhas Alia, Muntaz e Esmeralda e dois meninos Hanif e Mustafá. A pequena e negra Muntaz, o patinho feio da família, acabará em seu segundo casamento, roubando o namorado da irmã Alia e casando-se com Ahmed Sinai, passando a se chamar Amina Sinai. O casal terá dois filhos, sendo que o primeiro, nosso herói, será trocado na maternidade de Bombaim e posteriormente, sua irmã, a macaca de cobre que se tornará a famosa Jamila Cantora no Paquistão.

Salim Sinai descobre, aos dez anos, que tem o poder da telepatia, assim como, cada uma das 1001 crianças nascidas na Índia, neste mesmo dia, também possuem alguma aptidão extraordinária. Salim conseguirá, por algum tempo, conectar-se telepaticamente com todos os outros filhos da meia-noite. Uma dessas crianças, o terrível Shiva, o bebê trocado, virá reinvindicar seu lugar roubado involuntariamente por Salim Sinai.

No decorrer da trama, a história de Salim Sinai se confunde com vários eventos da Índia contemporânea, como a guerra indo-paquistanesa de1965 e os anos de ferro da primeira ministra Indira Ghandi de 1975 a 1977, como explica o próprio Salman Rushdie na Introdução deste romance: "(...) Então Salim, sempre um batalhador por significados, me sugeriu que toda a história indiana moderna aconteceu como aconteceu só por causa dele; que a história, a vida de sua gêmea-nação, era, de alguma forma, culpa toda dele. Com esta proposta pouco modesta, veio à luz o tom característico do romance, comicamente afirmativo (...)".

Finalmente, chego à conclusão de que é simplesmente impossível escrever um resumo deste romance, tantas são as histórias entrecruzadas, algumas realistas e outras fantásticas. Tantos personagens incrivelmente convincentes e bem delineados que, em última análise comprovam a habilidade do grande escritor que é Salman Rushdie, independente de todas as polêmicas políticas e religiosas que sempre provocou na mídia internacional. É um livro que já deixa saudades e aguarda certamente uma futura releitura.

Comentários

Barros (RBA) disse…
Tinha certeza que este livro iria toca-lo profundamente. O mais interessante é que me interessei por ele após ler "Neve" de Orhan Pamuk e seu texto onde citou "Os Versos Satânicos" de Salman Rushdie. São as tais conexões que faço usando somente meu "feeling".
É um prazer compartilhar com você as genialidades.
Alexandre Kovacs disse…
Realmente, considero que "Os filhos da meia-noite" deve ser incluído em qualquer lista dos melhores romances já escritos. A genialidade de Salman Rushdie é profundamente regional e ao mesmo tempo universal como toda boa literatura deve ser.
Raphael Peixoto disse…
Esse livro, sem sobra de dúvida, vai ser o próximo da minha lista!! Por coincidência com o comentário do Roberto, tive vontade de comprar o livro justamente ao ler a passagem do livro Neve do Pamuk. A vontade de ler Rushdie é tão grande que vou acabar lendo "Os filhos da meia-noite" e "Versos Satânicos" ao mesmo tempo.
Alexandre Kovacs disse…
Raphael, obrigado pela visita. Recomendo a você começar com "Os filhos da meia-noite" para só depois passar para "Versos Satânicos" que é uma leitura bem mais pesada para um leitor "ocidental". Abraço
Raphael Peixoto disse…
Valeu pela dica, Kovac! Sim, e obrigado pela indicação do blog jurídico. Realmente, no Brasil, ao contrário dos EUA, nós não temos bons blogs na área jurídica.
Anônimo disse…
Muito enredado e confuso, Sidney Sheldon resumiu todas essas questões e acrescentando a política
norte americana e, como sempre, vislumbrando a ética extinta do homem em "O Machão".
Abraço!
Alexandre Kovacs disse…
Daisy, obrigado pela visita. Não entendi a comparação entre Sidney Sheldon e Salman Rushdie, mas respeito a sua opinião. Volte sempre.
Anônimo disse…
Olá Alexandre,
Na verdade eu só pensei em dos alicerces do enredo, a questão da troca de bebês. No livro de Sheldon (não sou defensora do autor), a trama tem base na adoção de um bebê judeu por um árabe já que os pais eram amigos. Assim, eu tentei fazer analogia das culturas, mas deixa pra lá meu amigo, eu ainda nem li Os filhos da meia noite. Mea culpa.
Beijo e parabéns pelo site, Voltarei.
Alexandre Kovacs disse…
Daisy, desculpe não ter entendido o comentário e parabéns pelos seus textos no http://www.lendo.org/ que recomendo para toda a tribo de adoradores de literatura.
Anônimo disse…
Mas tenho tanto pra ler e aprender ainda... mas obrigada mesmo assim meu querido. Vindo de ti, eu morro de emoção.

Beijo e obrigada!
Anônimo disse…
Sem dúvida nenhuma o melhor livro da década de 80. Um livro fantástico e que me fez lembrar uma obra maravilhosa chamada o Tambro do Gunter Grass. Cara parabéns pela descrição e a análise que fez de uma obra tão grandiosa quanto esta! quem dera todo mundo pudesse ler este livro fantástico!! me adiciona ai pois também gosto muito de literatura e também escrevo!! um abraço!!
Alexandre Kovacs disse…
Leonardo, obrigado pela visita e comentário. Gunter Grass está na minha relação de futuras leituras, incluindo a sua autobiografia lançada recentemente (achei ótimo o título, mesmo tendo sido traduzido erradamente como "nas peles da cebola" quando melhor seria "descascando a cebola"). Mais uma vez obrigado e volte sempre!
Anônimo disse…
Encontrei teu blog porque estou lendo "os filhos da meia noite", mas ainda não me encantei com o livro, estou exatamente nas 100 primeira páginas (120) paralelamente leio "Inês da minha alma" Isabel Allende que comecei para me dar suporte para continuar com Rushdie; alterno as leituras; insistirei...
Alexandre Kovacs disse…
Anônimo, Só posso recomendar que você continue com os filhos da meia-noite mais um pouco, pois acho que Salman Rushdie vale o esforço.
Anônimo disse…
Agora darei continuidade a Inês da minha alma, mas retomarei a leitura. Obrigado!
Alexandre Kovacs disse…
Lumdila, espero que Rushdie consiga finalmente conquistá-la. Obrigado pela visita e comentários!
Ana Sofia Couto disse…
Terminei hoje a leitura do livro de Rushdie. Gostei muito, e da sua análise aqui neste espaço também. Eu achei particularmente interessante a forma como o plano da escrita e o plano da história propriamente dita se ligam. E o facto de o protagonista considerar o optimismo como uma doença.
Alexandre Kovacs disse…
Ana Sofia Couto, um livro maravilhoso sem dúvida. Obrigado pela visita e comentário e seja bem-vinda sempre.
VITORCRDIAS disse…
Estou lendo este livro e para ser sincero,não consigo achar um equivalente na nossa literatura(do Brasil).
Esses escritores extrangeiros tem algo que falta e muito nos nacionais.
Eu gostei muito de ter lido o livro: "Meu nome é vermelho",de Orham Pamuk,o mesmo autor de "O livro negro.
Meu pai era escritor,mas eu nem sei quantos livros ele já publicou.

Silvio de Oliveira Dias(de Curitiba).Escritor regionalista e empenhado na conscientização sobre a preservação do meio ambiente.
Livros que me lebro: "Bom dia natureza" e "As aventuras de Vanessa".
vitorcrdias.
Alexandre Kovacs disse…
Vitor, seja bem-vindo por aqui e Orhan Pamuk é mesmo ótimo, já resenhei alguns romances dele no blog. Obrigado pela visita e comentário!
Monique disse…
Esse livro parece ter tudo que eu gosto num romance , ótima resenha deu vontade de ler pra ontem.
Alexandre Kovacs disse…
Monique, que bom ter despertado a sua vontade ler o livro, realmente muito bom. Esta é a aspiração de toda resenha.

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