Postagens

Márcia Barbieri - [Tempo de cão]

Imagem
Márcia Barbieri - [Tempo de cão] - Editora Reformatório - 220 Páginas - Design e editoração eletrônica: Karina Tenório - Ilustrações: Ivan Sitta - Lançamento: 2022. O mais recente romance de Márcia Barbieri apresenta diferentes vozes narrativas em primeira pessoa, alternando monólogos em um exercício literário que só encontro similaridade nas obras de Samuel Beckett e László Krasznahorkai. Um dos personagens principais, Menino, retorna ao povoado natal dizimado pela varíola do macaco e tem a função de enterrar os corpos, auxiliado por Sombra e Barnabás, apesar de não se definir como um coveiro: "Entre tantos eu fora o nomeado. Era preciso levantar as mãos aos céus e agradecer por isso. Eu preparava os mortos para que se assemelhassem aos vivos. Mesmo não acreditando na inocência dos vivos." Menino é atormentado pela ausência do pai na sua formação e a dificuldade de construir afetos: "Afetos não passam de ilusões do nosso cérebro para suportar a dor da existência.&quo

Sandra Godinho - A secura dos ossos

Imagem
Sandra Godinho - A secura dos ossos - Editora Patuá - 184 Páginas - Capa: Maria Carolina Godinho - Introdução de Mikael de Souza Frota - Lançamento; 2022. O romance mais recente de Sandra Godinho demonstra a maturidade atingida pela autora após uma curta e intensa carreira literária. De fato, alguns de seus premiados livros anteriores, tais como:  Tocaia do norte , A morte é a promessa de algum fim e Estranha entre nós , parecem ter pavimentado o caminho para a importância e urgência desta obra, na qual, mais uma vez, o registro histórico é a base de toda a construção ficcional. Em A secura dos ossos , finalista do Prêmio Leya 2022, o Massacre de Haximu, ocorrido em 1993, é revisitado com sensibilidade e lirismo, mas sem omitir a brutalidade da execução de homens, mulheres e crianças do povo indígena Yanomami que habitavam a região montanhosa de fronteira entre Brasil e Venezuela. A narradora-protagonista,Tainá Terra, busca compreender porque foi abandonada pela mãe, Amana Terra, aos

Jorge Sá Earp - O fio da seda

Imagem
Jorge Sá Earp - O fio da seda - Editora 7Letras - 168 Páginas - Lançamento: 2023 O mais recente lançamento de Jorge Sá Earp é um sensível romance de formação com base nas suas memórias da infância até a adolescência. Na primeira parte, apesar da narrativa em terceira pessoa, os fragmentos das lembranças escapam do autor como um fluxo de consciência, revelando o que ficou marcado na mente da criança que viveu na casa em Lages, Santa Catarina: as histórias que a mãe lhe contava, a convivência com a Babá e o tio-avô, o urso Zé de textura macia e olhos pretos de botão que o protegia do gigante da cortina, assim como os seres que habitavam o quarto, personagens formados por tecidos, almofadas e tudo que a imaginação infantil pudesse criar. No romance, o autor empresta as suas memórias para o protagonista Igor, obedecendo a uma sequência não exatamente linear, ditada mais pela emoção do que pela lógica, a narrativa avança ao longo dos anos sessenta para outras residências onde a família moro

Lilia Guerra - Amor avenida

Imagem
Lilia Guerra - Amor avenida - Editora Patuá - 312 páginas - Capa e projeto gráfico: Roseli Vaz - Lançamento: 2022. Primeiro romance de Lilia Guerra, publicado originalmente em 2014, Amor avenida está sendo relançado agora pela Editora Patuá, um livro que assim como os mais recentes – a antologia de contos Perifobia e o romance  Rua do Larguinho –,  também aborda o tema das mulheres negras excluídas, sobrevivendo nas comunidades carentes das periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. Contudo, em Amor avenida a miséria extrema é apresentada nos seus aspectos mais cruéis, infelizmente perpetuados pelo preconceito e o racismo estrutural da nossa sociedade, evidenciados a partir das ações (ou falta de ações) do Estado e das instituições oficiais no acesso diferenciado aos serviços públicos básicos, tais como: segurança, saúde, educação e justiça.  O romance tem como base a trajetória de Viviana que, sem condições de se manter no interior após ter sido abandonada pelo marido, e

Julia Barandier - Bakken

Imagem
Julia Barandier - Bakken - Editora 7Letras - 184 Páginas - Lançamento: 2022. O romance de estreia de Julia Barandier surpreende pela segurança na utilização de diferentes técnicas narrativas, tais como o gênero textual diário, fluxo de consciência e até mesmo poesia, apresentando ao leitor  a improvável amizade de dois homens solitários de meia-idade em busca de algum tipo de compensação na arte para lidar com suas perdas emocionais. Portanto, trata-se de um livro desafiador tanto na forma quanto no conteúdo e no qual, adicionalmente, não podemos acreditar nas pistas que os personagens pouco confiáveis revelam, formando a nossa própria versão a partir dos múltiplos pontos de vista e fragmentos narrativos. Antônio, um arquiteto brasileiro, após o divórcio decide recomeçar a vida em Copenhagen, Dinamarca, passando a escrever cartas para Marta sua ex-esposa que nunca são enviadas; textos que se transformam em uma espécie de diário, conectando passado e presente. Antônio logo conhece Hans,

Adriane Garcia - A bandeja de Salomé

Imagem
Adriane Garcia - A bandeja de Salomé - Editora Caos & Letras - 160 Páginas - Arte de capa: Iara Ariel - Edição bilíngue, tradução para o espanhol de Manuel Barrós - Lançamento: 2022. Apresentando um conceito semelhante aos poemas reunidos em Eva-proto-poeta , este mais recente lançamento de Adriane Garcia também seria em outros tempos um ótimo candidato à fogueira, juntamente com sua autora, condenada por questionar os dogmas de uma religião estabelecida sobre estruturas patriarcais. De fato , principalmente no Antigo Testamento, a bíblia perpetua uma espécie de legitimação para a dominação masculina com base em narrativas cruéis nas quais o modelo de submissão da mulher é exaltado como exemplo moral e validado por uma antologia de textos que justificam muitas vezes a exploração sexual e o feminicídio. Curiosamente, nas versões propostas por Adriane Garcia, as parábolas bíblicas recontadas do ponto de vista feminino ganham em sensibilidade, sem prejuízo da mensagem religiosa que pa

Pedro Augusto Baía - Corpos benzidos em metal pesado

Imagem
Pedro Augusto Baía - Corpos benzidos em metal pesado - Editora Record - 112 Páginas - Foto de capa: Carambela de Rao Godinho - Lançamento: 2022 Os contos do livro de estreia do paraense Pedro Augusto Baía, vencedor do prêmio Sesc de Literatura edição 2022, têm como elemento de ligação a rotina de violência e destruição que domina a região norte do Brasil nos últimos anos. As narrativas demonstram o avanço do garimpo ilegal, impulsionado pela omissão do poder público na fiscalização para proteção do meio ambiente e dos povos indígenas, assim como a desigualdade social que perpetua o cenário de devastação atual, sem apresentar opções dignas de sobrevivência para a população local, restando apenas a migração.  O regionalismo do autor assume um tom de urgência e denúncia, contudo sem perder o lirismo do texto literário ao aproximar ficção e realidade. Em Tanimbuca , uma árvore emergente brasileira nativa da Amazônia, cuja madeira tem valor comercial, a motoserra assume um protagonismo que

Victoria Schechter - Prismas

Imagem
Victoria Schechter - Prismas - Editora Patuá - 288 Páginas - Capa e Diagrmação de Fernando Campos Lançamento: 2023. A visão na literatura é normalmente metáfora para o conhecimento, sendo a cegueira, em contrapartida, um destino trágico de escuridão e ignorância; em alguns casos até mesmo representação para a falta de humanidade que se torna barbárie, como na alegoria de José Saramago em Ensaio sobre a Cegueira . Já Victoria Schechter, ela própria uma deficiente visual, nos apresenta em seu romance de estreia uma abordagem mais realista. A protagonista-narradora é Isabel Leone, uma cantora e professora de música cega de nascença que tem a sua rotina alterada por uma gravidez indesejada. Durante uma longa viagem de avião, ela relembra passagens de sua vida desde a infância, o preconceito social contra a deficiência, as experiências amorosas e a descoberta de seu próprio corpo.  A autora destaca em seus comentários finais que a deficiência visual é ainda mais cruel com as mulheres que, o

Shirley Jackson - Sempre vivemos no castelo

Imagem
Shirley Jackson - Sempre vivemos no castelo - Editora Alfaguara - 176 Páginas - Tradução de Débora Landsberg - Capa: Elisa vonRandow - Imagem de capa: Youth de Will Barnet - Lançamento 2022. Shirley Jackson (1916-1965) ficou conhecida por seu conto  A loteria  ( ler a resenha de  A loteria e outros contos  no Mundo de K ), que se tornou um clássico do gênero de horror. Contudo, é neste seu último romance,  publicado originalmente em 1962,  que encontramos uma das anti-heroínas mais misteriosas e bem construídas da literatura, assim como um dos melhores parágrafos de abertura já escritos: "Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. Volta e meia penso que se tivesse sorte teria nascido lobisomem, porque os dois dedos médios das minhas mãos são do mesmo tamanho, mas tenho de me contentar com o que tenho. Não gosto de tomar banho, nem de cachorros nem de barulho. Gosto da minha irmã Constance, e de Richard Plantagenet, e de Amanita phal

Valéria Martins - O lugar das palavras

Imagem
Valéria Martins - O lugar das palavras - Editora 7Letras - 132 Páginas - Capa de Luiza Chamma - Lançamento: 2023. Com uma combinação original entre romance e contos, a agente literária Valéria Martins faz a sua estreia na ficção utilizando a própria experiência no mercado editorial como inspiração para a criação do protagonista-narrador Rafael Sant'Anna,  um jovem recém-formado em jornalismo que sonha em se tornar escritor. No entanto, assim como tantos outros autores iniciantes, Rafael, que está desempregado e precisa cuidar da mãe e da avó dependentes, logo percebe que escrever bem é uma condição necessária, mas não suficiente para ter sucesso na área de literatura, uma empreitada que demanda muito trabalho e organização para vencer as  etapas de criação, publicação e  divulgação, verdadeiro desafio em um país de ótimos escritores e poucos leitores.  Orientado por uma colega de faculdade que trabalha na assessoria de imprensa de uma grande editora, Rafael se inscreve em uma ofici