Marcos J. Custódio - Os teus olhos estarão sobre mim

Literatura brasileira contemporânea
Marcos J. Custódio - Os teus olhos estarão sobre mim - Editora Mondru - 104 Páginas - Capa e projeto gráfico: Jeferson Barbosa - Lançamento: 2024.

Insólito, inusitado, incômodo: todos esses adjetivos se enquadram no livro de estreia de Marcos J. Custódio, que acompanha a trajetória de Luísa, uma mulher em situação de rua que aceita, de bom grado, tornar‑se o “cão de estimação” de uma família rica para escapar da miséria. Nessa fábula às avessas — em que é um ser humano que voluntariamente assume o lugar de um animal — o autor expõe, de maneira brutal, a desigualdade social que domina o país e revela seu aspecto mais cruel: a degradação da dignidade humana. Assim, Luísa transforma‑se em Lulu e passa a receber toda a atenção e os mimos, incluindo banhos e tosa, antes destinados à antiga cadela da casa.

Uma trama que parece inverossímil à primeira vista, mas que logo se revela um espelho de situações que presenciamos diariamente. Seja na forma de pets que recebem um nível de cuidado, afeto e investimento superior ao destinado a grande parte da população, seja na figura de moradores de rua que buscam a companhia de cães para conquistar, de forma contraditória, um aspecto mais humanizado e, assim, obter esmolas melhores, o romance evidencia contradições que preferimos ignorar. Ao exagerar esses contrastes, Custódio nos força a encarar a naturalização da exclusão e a refletir sobre o valor das vidas humanas em uma sociedade marcada pela indiferença.

"A empregada Jane nem disfarça o asco de colocar a ração no comedouro de Lulu. Pela empregada, essa falsa cadela morreria de fome, farsante! Mas hoje Lulu rejeita a ração; quer comida de verdade, carne, e era só o que me faltava fazer carne pra essa mendiga. [...] Mas o amor da mãe Alexandra preenche o  animal, e Lulu está cada vez mais canina. Já late, rosna, ladra, sem pensar muito. Sem pensar muito, fica triste quando a dona está longe, feliz quando recebe carinho. Sem pensar muito, o corpo se inclina para o lado das feras domesticadas. Mas se pensar muito, se. Sim, é estranho que lhe faltem pelos para cobrir sua vida. A boca nem de longe lembra um focinho e os atuais dentes são impróprios para quebrar osso. Agita a bunda como se tivesse um rabo, mas não tem. Agita uma ausência. Os funcionários nunca a veem de pé ou falando português. Os dias na mansão passam e é questão de tempo para responderem, quando perguntados sobre a raça de Lulu: essa daí é uma legítima cachorra da raça humana." (pp. 33-36)

Um dos aspectos mais curiosos é o modo como Alexandra, a proprietária da mansão, fragilizada pela morte do filho e do marido, passa a enxergar e tratar Luísa genuinamente como um animal, deixando empregados e tratadores perplexos. Contudo, à medida que o tempo passa, a situação vai sendo assimilada e naturalizada por todos, a ponto de algumas amigas de Alexandra imitarem o gesto e “adotarem” também outras pessoas em situação econômica e social precária. A exceção, ainda que pelos motivos mais equivocados, é a empregada Jane, que por inveja não aceita a ascensão social de Luísa, mesmo que esta se dê sob a condição degradante de assumir o papel de cadela. É surpreendente notar como, muitas vezes, a desigualdade social é justificada e perpetuada pelos próprios excluídos.

"O corpo do motorista Valdi, homem de tantos anos, está acompanhado do filho Marlon. É que morreu depois de um mal súbito e de ter sido levado às pressas a um hospital público. Uma terrível dor de cabeça, cegueira temporária, espuma pela boca. Morreu sem um diagnóstico para suas últimas aflições. Mas a terra do cemitério é democrática: cobre diagnosticados e não diagnosticados. Triste morrer justo em um dia de folga. [...] Para compensar a sua ausência, Alexandra também quer comprar uma vaga no disputadíssimo cemitério da elite paulistana. Se os corpos putrefatos do cemitério receberão bem o novo inquilino, isso já é outra história. com certeza chiarão à sua maneira, como faziam quando sobre a superfície viviam, mas a queixumes de gente morta não há quem dê ouvidos. Somente a literatura é capaz de fazê-lo, e literatura caiu em desuso. [...]" (pp. 59-60)

Um livro perturbador, construído a partir de uma ideia tão ousada quanto bem desenvolvida, que se torna ainda mais inquietante à medida que as situações de degradação se intensificam e a própria Luísa se empenha em preservar sua posição e seus supostos “privilégios” na casa como Lulu, abandonando gradualmente suas características humanas. A narrativa ganha contornos ainda mais sombrios quando episódios de violência começam a emergir, consequência direta da relação absurda que se estabelece entre Alexandra e Luísa — uma relação que, longe de ser contestada, passa a ser imitada no requintado e concorrido bairro de São Paulo onde a trama é ambientada.

"Recolhida a sua casinha, Lulu implora a Deus coragem para cruzar de vez o limiar que segrega humanos e bichos. Quer realizar a travessia para o lado de lá. Tenha a bondade de me dar a transformação. Posso sair daqui, dessa vida, dessa casa, ela pensa. Mas sair pra onde? Onde me querem? Se continuar nessa mistura de tipos, logo se cansarão de mim por aqui, enxergarão quem eu sou. Melhor sair por aquele portão e esquecer que vivi isso. Melhor ficar. Melhor ir. Melhor continuar. Esse dilema que eu vivo é o mundo. [...] Se Lulu for transfigurada, não precisará mais imitar o tempo inteiro. Misericórdia, eu imploro, que eu acorde na pelagem de uma cachorra de verdade; quero garras, focinho, nunca mais temer ser abandonada, ser flagrada sendo... eu. Quero ter memória de uma cachorra para esquecer os anônimos que vi sumirem. [...]" (pp. 69-70)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Marcos J. Custódio nasceu no Maranhão, em 1991, mudou-se para fazer pós-graduação em São Paulo (2015-2019) e retornou ao MA, onde vive atualmente. Seu principal interesse na literatura é escrever o insólito com temáticas contemporâneas. Possui contos selecionados em várias coletâneas. Foi um dos contemplados no Prêmio Barueri de Literatura 2022 (2º lugar), e recebeu uma menção honrosa no 21º prêmio literário Paulo Setúbal. É um dos destaques na antologia de contos OFF Flip 2024.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Os teus olhos estarão sobre mim de Marcos J. Custódio

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