Jozias Benedicto - As vontades do vento
O romance As vontades do vento de Jozias Benedicto — finalista do Prêmio LeYa 2024 — é o resultado de um cuidadoso exercício literário ao compor com segurança os elementos do romance histórico, mesclados ao realismo mágico, e sustentados por uma bem-executada técnica de polifonia narrativa que me fizeram lembrar do mestre João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) em Viva o Povo Brasileiro. De fato, ao desenvolver cada capítulo em primeira pessoa, concedendo voz a personagens de diferentes classes sociais, etnias e épocas, o autor consegue obter múltiplas versões de uma mesma história — e da própria História — que se sobrepõem e frequentemente entram em conflito, desafiando o leitor a elaborar a sua própria versão.
O argumento central tem como base a trajetória de uma família que vive em uma cidade do interior, descrita com lirismo na prosa poética que se manifesta na voz de Pedro, o filho mais velho entre três irmãos: "Minha cidade foi fundada (ou foi aparecendo) no meio deste interior no Norte do Brasil num lugar cortado por um rio que vai seguindo o caminho dos ventos para a capital onde, como um suicida, se joga, gritando, no mar." A trama se inicia quando Bento, o caçula, recebe um pedido inusitado da mãe: "Quando minha mãe morreu, nossa família continuou muito unida. E antes mesmo de completar um ano de sua morte, ela comentou comigo, com a mesma voz doce e firme de quando era viva: queria fazer uma viagem conosco, eu e meus irmãos."
"Quando minha mãe falou comigo que precisava fazer essa viagem, pois o desejo dela era passar na capital o seu aniversário, o primeiro dela depois de morta, a reação dos meus irmãos foi diversa. Pedro não gosta de dormir fora de casa, quanto mais de pensar em sair de nossa cidadezinha, e ficou muito amuado; Joaquim ficou bastante alegre e passou a sonhar o tempo todo com as festas da capital, os bailes, os clubes, os cabarés. Eu é que fiquei cheio de inquietações, ia ser uma despesa grande, e a nossa vidinha era assim bem simples; se do dinheiro das cabras e das rendas descontando o mercado e as rinhas e a cerveja e os cadernos não sobrava quase que mais nada, como a gente ia conseguir fazer uma viagem longa e custosa como a tão desejada por nossa mãe, mesmo depois de morta?" (p. 25)
Dividido em três partes — O Interior, A Travessia e A Capital — o romance avança em constantes idas e vindas no tempo, esclarecendo o destino e as motivações tanto dos personagens principais quanto dos secundários. Entre eles, o pai, mascate que percorria o interior e morre após a picada de um escorpião; a avó, que se recusa a morrer mesmo depois de ter as duas pernas amputadas, guardando um segredo sobre a origem da família que pode terminar com o processo de canonização de seu irmão, o Monsenhor; e Carmosina — ou Mocinha, como foi apelidada pela dona da casa — que chega muito jovem para se juntar à família, ajudando em todas as tarefas até ser seduzida e cair na vida, passando a trabalhar para a cafetina Elisa.
"Só acordei com a dor da picada do escorpião; posso dizer que minha vida toda estive meio morto até o veneno do escorpião se espargir por todo o meu sangue e, não só me matou, como me despertou — só então pude ver tudo com clareza. Os escorpiões amarelos, os mais letais — como aquele que me desadormeceu - se reproduzem sem necessidade de formar um casal. Todos os escorpiões amarelos são fêmeas, seus óvulos não precisam de esperma para gerar novos escorpiõzinhos, e cada uma delas pode parir sem o dever de acasalamento, de escolher um parceiro, de namorar, de noivar, de casar, de trepar. Um ser muito evoluído, imaginem quanto desgaste e perda de tempo e energia elas eliminaram ao dispensar o sexo para se concentrar na destilação de um veneno poderosíssimo. Mulheres são muito perigosas." (p. 41)
Um livro muito recomendado por conseguir conjugar entretenimento e reflexão ao revisitar um passado que explica muitas das desigualdades sociais que ainda hoje enfrentamos, quase sempre enraizadas no racismo estrutural. A narrativa nos lembra que, embora sejamos fruto do encontro entre o pequeno grupo de invasores portugueses, os povos indígenas e os africanos escravizados, essa origem foi marcada por violência, exclusão e disputas de poder com consequências que perduram até hoje. Trata-se, portanto, de uma obra que, além do valor literário, se posiciona como um gesto político, ao avaliar a nossa identidade cultural com consciência crítica.
"Houve uma guerra muito sangrenta entre brancos e indígenas (naquela época acho que não tinham trazido os escravos africanos), mas os brancos estavam perdendo as batalhas e então apareceu uma Santa que ensinou o que eles deviam fazer para massacrar os inimigos, acho que era Nossa Senhora da Misericórdia. Assim, os brancos (que acho que eram todos portugueses ou filhos de portugueses) para agradecer à Santa ordenaram que os cativos construíssem uma igrejinha bem no alto de um lugar onde se vê o rio com suas águas barrentas se derramando no mar cor de anil. Os brancos eram muito bons e só mataram do exército inimigo os homens e meninos maiorzinhos, e deixaram vivas as mulheres e crianças pequenas para trabalhar para eles e alguns casaram com as indígenas, pois naquele tempo quase não vinham mulheres do Reino de Portugal para cá para esse fim de mundo que era o Brasil Colônia. [...]" (pp. 128-9)
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