William Faulkner - O Som e a Fúria
William Faulkner - O Som e a Fúria - Editora Cosac Naify - 331 páginas - Publicação 2003 - Tradução de Paulo Henrique Britto - Atualizado pelo lançamento da Editora Companhia das Letras em 15/09/2017.
Relançado pela Companhia das Letras, que adquiriu parte do acervo da extinta Editora Cosac Naify, "O Som e a Fúria", quarto romance de William Faulkner (1897-1962), foi publicado originalmente em 1929 e é considerado pela crítica sua obra mais importante. O tema central é o processo de desagregação e decadência da tradicional família Compson e seus últimos descendentes no ambiente racista do sul dos Estados Unidos. Faulkner utilizou técnicas modernas como o fluxo de consciência dos personagens, estruturas de tempo e espaço não lineares e, principalmente, diferentes vozes narrativas para compor esta história surpreendente, que não poderia mesmo ter sido integralmente compreendida na época, como explicou o próprio autor, vencedor do prêmio Nobel em 1949:
"Quando comecei o livro, não tinha nenhum plano. Eu nem sequer estava escrevendo um livro. De repente, parecia que uma porta se havia fechado, em silêncio e para sempre, entre mim e os endereços dos editores, e eu disse a mim mesmo: 'Agora posso escrever. Agora posso simplesmente escrever'".
A estrutura original do romance é dividida em quatro partes, cada uma constituída por pontos de vista diferenciados. Os principais personagens são os irmãos Benjy, Jason, Caddy e Quentin, que alternam as vozes narrativas com noções independentes de tempo e espaço. Nesta edição foi incluído um apêndice sobre a história da família Compson de 1699 a 1945, publicado pela primeira vez em 1946 numa antologia de Faulkner, e incluído, por recomendação do autor, em duas reedições subsequentes.
A primeira parte é narrada por Benjamin Compson, ou simplesmente Benjy, um retardado mental de trinta e três anos, sem o domínio da fala. Esta sequência do romance é decididamente a mais difícil, um verdadeiro desafio para o leitor que se sente perdido no mosaico de impressões e sentimentos do personagem deficiente. Os eventos são introduzidos aleatoriamente e fora de uma ordem cronológica natural, neste ponto parece só haver uma forma de conseguir avançar na leitura que é deixando-se levar pelas sensações de Benjy e não buscar um entendimento racional do foco narrativo, desde que, a princípio, parece não existir lógica entre as causas e consequências. A irmã Caddy e a criada negra Dilsey são as únicas oportunidades de afeto para Benjy que é sempre considerado um estorvo e origem de vergonha para a família Compson. O título do livro é uma citação a Macbeth, onde William Shakespeare definiu a vida como "uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada".
O irmão mais velho Quentin, considerado como a esperança de redenção para a família quando foi enviado para estudar em Oxford, patrocinado pela venda do terreno da família para um campo de golfe, é o narrador da segunda parte do romance, onde o nível de dificuldade para o entendimento do leitor é semelhante ao do início, devido à mistura de fantasia e realidade deste personagem. Quentin alimenta um amor obsessivo e incestuoso por Caddy que o levará a um trágico fim, após o casamento da irmã. A filha bastarda de Caddy se chamará também Quentin em homenagem ao irmão.
A terceira parte é narrada de forma linear por Jason, último descendente da família e responsável por cuidar da mãe hipocondríaca, Benjy e Quentin (filha de Caddy). Somente nesta parte conseguimos entender de forma clara as relações entre os irmãos e o caráter promíscuo da irmã e sobrinha. O sádico Jason, no entanto, é o maior símbolo da decadência dos Compson.
A quarta e última parte é constituída por um narrador indireto, o próprio Faulkner, que ressalta a rotina de trabalho da velha criada negra Dilsey e seu filho Luster, inteiramente responsável por cuidar de Benjy. Fica caracterizado o contraste entre a fraqueza de caráter dos patrões e a firmeza moral de Dilsey que, apesar de ser tratada ainda como escrava, consegue manter a cega lealdade à família Compson, ou o que restou dela.
Tratando-se de relançamentos do catálogo da Cosac Naify, o melhor é evitar comparações, principalmente sobre o projeto gráfico, já que a saudosa editora era imbatível neste aspecto. Esta nova edição da Companhia das Letras ganhou uma capa sobre pintura da série "Bacchus", do artista norte-americano Cy Twombly (1928-2011), e posfácios de Jean-Paul Sartre ("Sobre O som e a fúria: a temporalidade na obra de Faulkner", de 1939, que abriu caminho para leituras do romance na Europa) e de Paulo Henriques Britto, texto inédito sobre a experiência e os desafios de traduzir o clássico de Faulkner. Um livro indispensável para quem gosta de literatura.
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Comentários
Lendo Virgínia, o mundo do Faulkner se abrirá com muito mais esplendor. Ambos são escritores que exigem leitores atentos ao que está além do texto. Digo texto formal. Deixar-se levar pelo sentimento do personagem e não pelo que ele diz é algo se aprende após ler algumas páginas, lendo a Virginia, ou você. Um grande abraço.
ps. Li "De Verdade" do Sándor Márai (Cia. das Letras), ele é um dos meus preferidos e lá pelas tantas, dois personagens têm um brincadeira que é chamada de Kovacs. Nâo pude deixar de lembrar do seu ótimo texto e blog.
Esse do Faulkner é capaz de ter na biblioteca da faculdade (talvez em inglês). Vou procurar por lá ;)
Beijo
Estou devendo a mim mesmo algumas leituras e resenhas de Sándor Márai, no mínimo em homenagem à minha ascendência húngara. Sándor significa Alexandre (meu primeiro nome) na complicada línga húngara e Kovacs, meu nome de família, é muito comum na Hungria, como você bem destacou no seu comentário.
Com relação a Faulkner, o link que coloquei na frase de abertura da postagem em "O Som e a Fúria" aponta para um hipertexto do romance em inglês (free of charge).
(fui promissora... rs...)
Mas, Djabal disse tudo.
Virgínia e William.
Tem que ter sensibilidade para absorver e compreender (além de reter), o que eles dizem nas entrelinhas bem escritas.
Sándor ou Alexandre, é você quem busca os títulos mais que tudo, para nos dizer: a literatura é além dos best-sellers e bichos peludos que existem por aí.
Evohé, Kovacs.
As letras te saúdam e eu digo: amém!
Beijos e aquela coisa toda.
abraço, Kovacs.
Muito obrigado pelo elogio, em meu nome e de meu pai que se chamava Sándor e também amava a literatura.
um abraço,
clara lopez
Começei um blog de livro e literatura independete, pretendo falar sobre essas iniciativas que existem por ai. Passa lá!
Gostei da idéia da sua página.
Abraços e que você tenha um lindo dia de outono...
Ainda não li Faulner. Pelo que pude perceber é uma leitura um tanto difícil. Não consegui ler O Farol de Virginia Woolf. Foi uma tentativa feita, quando estava lendo livros mais fáceis de serem compreendidos. Quem sabe agora, né?
Adorei sua visita ao Blog Linha. Hoje o dia ainda está nublado, e o céu com fiapos de azuis.
Bjos
"Esta é a terceira vez que leio "to the lighthouse" da inglesa Virginia Woolf (1882 - 1941), considerado um dos clássicos da literatura moderna do século XX. Lembro que na minha primeira leitura, durante a adolescência e por recomendação de meu pai, não entendi absolutamente nada, o que era um fato bastante comum nos livros que ele recomendava. Hoje, passados alguns anos, avalio que devo ter chegado a 30% de aproveitamento. Quem sabe (tomara) ainda terei tempo para uma quarta tentativa".
Um abraço.
Tina Oiticica do Universo Anárquico.
Achei muito interessante a sua resenha sobre o livro O som e a Fúria de Faulkner. Estou em busca de trabalhos de autores norte-americanos que tentem retratar a realidade dos negros. Gostaria de saber se há uma tentativa de se retratar um socioleto da comunidade negra nessa obra. Agradeço desde já sua atenção.
Oitenta anos depois, descubro a perfeição da narrativa de Faulkner. A mídia atordoa, excita, confunde o pobre leitor, o qual, perdido na singela decadência da grande família sulista, mal percebe até onde chegará nos labirintos da mente de todos os homens.
Enquanto Quentin foge, Quentin se mata, Candace não existe, Jason morre, Jason é roubado, Maury é Benjamim e Dilsey, Dilsey guarda, e aguarda.