Cida Sepulveda - Clandestinas

Literatura brasileira contemporânea
Cida Sepulveda - Clandestinas - Editora 7Letras - 84 Páginas - Lançamento: 2025.

As personagens de Cida Sepulveda são mulheres que enfrentam algum tipo de sofrimento e situação de desespero, conduzindo-as a uma decisão que as tornará clandestinas diante da sociedade e dentro de suas próprias memórias, agora roubadas pelo trauma. Não é simples falar de aborto, e menos ainda torná-lo protagonista de uma coletânea de contos que expõe, sem filtros, a solidão de uma escolha impossível. Trata-se de um tema incômodo, brutal, que preferimos ignorar até que se insinue no nosso círculo de amizades ou na nossa família. A autora não oferece respostas fáceis, tampouco se apoia em julgamentos morais ou religiosos: ela revela o silêncio que cerca essas mulheres, expondo a culpa e a dor que não passam com o tempo.

A técnica narrativa se mostra apropriada ao tema: frases curtas e imagens duras conferem verossimilhança às tramas, refletindo a resistência das personagens diante de suas vulnerabilidades ao enfrentar questões éticas e de saúde pública complexas para as quais não estão devidamente preparadas. Os defensores da legalização argumentam que a proibição do aborto não impede sua prática, levando-a para a clandestinidade, sem os devidos cuidados, resultando em complicações graves e mortes. Por outro lado, os que defendem o direito à vida consideram a prática moralmente inaceitável e, além disso, apontam riscos à saúde da mulher. Entre esses extremos, o debate permanece aberto e distante de um consenso.

"Uma hora depois, acordei suavemente. Anestesia me normaliza, me põe em doce transe. No salão de recuperação, colchões dispersos pelo chão, tantos... uma eternidade de colchões a abraçar mulheres abortadas... Sim, é isto, me abortei ali — uma parte de mim, uma história que a ninguém interessa. Nem a mim. Oculto-a. E se jogo em sua cara agora é por desdita. Não é vingança, indignação, política. É desabamento, perda, a última palavra de uma infiel - porque fui contra o que aprendi no catecismo, nas missas na Bíblia, na sociedade, eu quebrei a barreira da moralidade e do espírito, eu entrei para o universo diabólico. E se me abraço agora é por instinto de proteção contra este inverno nublado que me pressiona o corpo, me empurra para o chão, para uma escuridão densa, penetrante. Instinto que não basta porque o abraço é pequeno, insuficiente para cobrir o passado. Abri os olhos lentamente, vi mulheres a dormir, outras a acordar, outras a se vestirem. Tentei me levantar. Tonteei. Uma enfermeira se aproximou: calma, flor, não se levante ainda, vou buscar um chá para você. Que amor, Deus. É disso que preciso, dessa coisa quente e doce que sai da boca e entra em mim pelos ouvidos e desce até às vísceras, retoca o coração." (pp. 18-9) - Trecho do conto Estorvo da história

Na verdade, ao longo dos contos, percebemos que no centro dessas histórias sobre vida e morte está situada a fragilidade da condição humana. A obra nos coloca como testemunha dessas perdas irreparáveis e de memórias que insistem em permanecer. Mais do que narrar experiências de mulheres vulneráveis em desespero, Clandestinas nos faz pensar sobre a sociedade que produz tais clandestinidades e sobre o preço que pagamos quando tentamos julgar ou, ainda pior, somos indiferentes ao sofrimento alheio. E, no final, a autora atinge um dos objetivos de toda obra literária, despertar a capacidade de entender o outro e exercer a empatia.

"Mariana diz: odeio este lugar, quero estudar, conquistar um trabalho decente, sair do beco, levar a mãe, abandonar a vergonha de ser. A menina vive no espelho: as espinhas do rosto lhe ofendem o olhar narciso. Ela se olha e se pensa. Se olha e se mostra. Se olha, se esconde. A mãe é megera. A irmão fugiu de casa há milênios. O irmão é babaca. O pai, morreu quando ela tinha dois anos, nem se lembra, mas sente saudade infinita. Vida-vai-vida-vem, o coração vibra, ora alerta, ora calmo! Se não há amor, não há nada, além de droga, fofoca, assalto e homicídio. Antes de dormir, Mariana risca os braços com a ponta da faca. Riscos sutis que esconde sob o suéter. Esconde porque teme que o pastor descubra os flagelos e a inquira. Na igreja, se alivia: só muita fé para suportar a aberração humana. Escola, igreja, traficantes, viciados, ladrões, sol, celular, solidão, medo, descobertas, perdas, risos, desejos, ritmos — marasmo." (p. 51) - Trecho do conto Sob o suéter

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Cida Sepulveda é escritora, poeta e professora. Seus livros anteriores são Sangue de romã (Scortecci, 2004), Coração marginal (Bertrand Brasil, 2007), Fronteiras – Poemas (Pontes, 2008), Todo amor tem seu dia de punhal (7 Letras, 2011) e O vestido criou Ana (Editacuja, 2022). Nas palavras de Manoel de Barros, que reconheceu sua voz poética desde o seu primeiro livro: “Tem solidão verbal esta jovem contista. Ela arma as palavras na frase com o amor de alguma falta”.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Clandestinas de Cida Sepulveda.

Comentários

Anônimo disse…
Lindo e triste!

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