Cida Sepulveda - O vestido criou Ana

Literatura brasileira contemporânea
Cida Sepulveda - O vestido criou Ana - Editora Editacuja - 112 Páginas
Projeto gráfico, capa e diagramação: Bruna Marchi - Lançamento: 2022.

Cida Sepulveda nos apresenta diferentes contos na forma de poemas com base em recortes na relação de uma mãe e uma filha, Elisa e Ana, não necessariamente as mesmas, vivendo em localidades do interior. Contudo, as diferentes mulheres carregam em comum a vivência de abusos físicos e psicológicos sofridos em uma sociedade ainda patriarcal e a herança de um vazio ancestral que não consegue ser preenchido pela fé ou pelo corpo. Uma das múltiplas Anas reflete sobre a antiga fotografia que mostra uma menina de olhos intensos na sua primeira comunhão, difícil acreditar que um dia foi essa menina em seu vestido impecável, abençoada e perfeita: "O tempo devastou crenças, imagens, ideias, passados e futuros. O vestido caiu em mãos mendigas, encardiu-se até o nada. / Ana não se liberta do retrato que a glorifica."

Os textos de Cida Sepulveda são permeados por frases curtas e diálogos essenciais em uma linguagem recriada – muito própria da autora –, na qual não encontramos uma palavra a mais ou a menos, estilo cortante e direto ao ponto, apesar da poesia sempre presente como na diversidade de emoções conflitantes em Carrossel: "A menina olhou uma única vez para trás: o parque se destacava no breu, longe, irreal. A roda-gigante girava, lotada de gente e gritos. Monotonia, felicidade, desejo, medo, melancolia, e o lago a beber luar. A ansiedade de Ana a atordoava." 

Angústia

Estrada de terra. Mãe e filha caminham. De onde vêm, pra onde vão, se não há começo nem fim na solidão?

Elisa, nervosa, repete: Ana, anda, desgraça! A menina, barriguda, descabelada, nariz sujo, chora, se dilacera em pavor e cansaço.

Poeira esfola pés e olhos, desejos de mãe se quebram em filha.

Ana intui: viver é rasgar-se.

Sol esbraseante, o corpo de Elisa, deserto de medos e rancores. A alma, tributo à morte em vigília. A filha, fraude de amor. Odeia-a.

Acuada pela miséria, a mulher invoca a morte: se Deus me levasse. Ela sabe que Deus não improvisa, apenas consola aflitos. Que, em outros mundos, a vida sonha e, em si, a vida estrangula.

Fios de cabelos grudam no rosto infantil. Elisa grita: cara de bolacha, lesma!

Ana desentende. Um dia, compreenderá a malícia de palavras cegas.

Se estancassem na tarde até o crepúsculo, até a noite as tragar em morte!

Sonhar morrer, mãe e filha pressentem o sono último, a fuga.

Um cavaleiro passa. O trote do animal, o chapelão e a grossura do macho, a ira de Elisa, a angústia de Ana – vida sopra e afoga.

O peão finge que as ignora, refugia-se na indiferença, some na poeira, deixa no ar a solidão que o desatina.

Elisa puxa a filha pelos cabelos e a arrasta. Não queria judiar tanto da criança, mas o mal é hereditário.

Ódio herdado é mais corrosivo.

Comunhão

I
Vestido de tecido grosso, sedoso, com desenhos em relevo, não há outro que se compare.

No retrato, ele se conserva, impecável. Ana não se acredita, o que virou a menina de olhos intensos?

Ajoelhada, mãos juntas, olhar fixo em Deus, ela exerce o papel de criança abençoada, perfeita.

Primeira comunhão, receber Cristo, senti-lo diluir-se na saliva e, por fim, engolir a paz engendrada no ato.

O tecido e o feitio custaram caro, mas a mãe não se afligiu, o momento era de elevação.

II
Arrastar-se para fora de casa, imbuir-se de noite, atravessar o pântano que a assola e acordar ontem.

Serenade, Schubert, cordas vibram delicadas, machucam. A brisa leva Ana para a margem, à carne.

Insetos pululam na escuridão, quebram encantos. Ana, um resto de papel e tinta no álbum de fotos.

III
O santo padre, na roupa suntuosa, encarou a menina e disse: corpo de Cristo!

Amém, ela respondeu, e abriu a boca, colocou a língua para fora, com força e determinação.

Repetiu a cena durante anos, até desacreditar de cristãos e cair na tentação de orgasmos.

IV
O vestido criou Ana. Ela tinha dez anos e temia a força do pensamento que lhe embaralhava o olhar. A comunhão a salvou do inferno.

O tempo devastou crenças, imagens, ideias, passados e futuros. O vestido caiu em mãos mendigas, encardiu-se até o nada.

Ana não se liberta do retrato que a glorifica.

Gozo 

Cansaço bateu, mas ela continuou a escrever. Palavras desconexas refletiam o estado de espírito combalido. Queria uma religião. Não encontrou. A falta de um templo para exortar Deus a desgastava, mas nçao podia forjar fé.

Pegou um livro de poemas, um de contos, outro de filosofia, um de autoajuda, encheu o criado-mudo de possibilidades. Deitou-se no chão, sentiu fervilhar a pele, os pelos eriçarem e, entre as pernas, o toque da língua do homem que a desprezava.

Acariciou-se, gesto repetitivo, sombio. A fervura da peleaumentou. Abriu a gaveta do criado-mudo, puxou o vibrador, ligou-o, a luzinha no escuro do quarto vandalizava o amor. Fechou os olhos, caiu numa ribanceira de lembranças eróticas.

O corpo, um espasmo que à alma desertava.

Literatura brasileira contemporânea

Sobre a autora: Cida Sepulveda é poeta e contista. Nasceu em Piracicaba, cresceu em São Pedro e, atualmente, vive em Campinas, onde atuou como professora da rede municipal de ensino. Seus livros anteriores são Sangue de romã (Scortecci, 2004), Coração marginal (Bertrand Brasil, 2007), Fronteiras – Poemas (Pontes, 2008) e Todo amor tem seu dia de punhal (7 Letras, 2011). Nas palavras de Manoel de Barros, que reconheceu sua voz poética desde o seu primeiro livro: “Tem solidão verbal esta jovem contista. Ela arma as palavras na frase com o amor de alguma falta”. Cida se define como “uma poeta anônima, casual, trágica, inconsequente, fruto e produto do casamento entre a urbanidade e a melancolia dos pastos antigos”, solo onde nasceu O vestido criou Ana.

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