Cida Sepulveda - O vestido criou Ana
Cida Sepulveda nos apresenta diferentes contos na forma de poemas com base em recortes na relação de uma mãe e uma filha, Elisa e Ana, não necessariamente as mesmas, vivendo em localidades do interior. Contudo, as diferentes mulheres carregam em comum a vivência de abusos físicos e psicológicos sofridos em uma sociedade ainda patriarcal e a herança de um vazio ancestral que não consegue ser preenchido pela fé ou pelo corpo. Uma das múltiplas Anas reflete sobre a antiga fotografia que mostra uma menina de olhos intensos na sua primeira comunhão, difícil acreditar que um dia foi essa menina em seu vestido impecável, abençoada e perfeita: "O tempo devastou crenças, imagens, ideias, passados e futuros. O vestido caiu em mãos mendigas, encardiu-se até o nada. / Ana não se liberta do retrato que a glorifica."
Os textos de Cida Sepulveda são permeados por frases curtas e diálogos essenciais em uma linguagem recriada – muito própria da autora –, na qual não encontramos uma palavra a mais ou a menos, estilo cortante e direto ao ponto, apesar da poesia sempre presente como na diversidade de emoções conflitantes em Carrossel: "A menina olhou uma única vez para trás: o parque se destacava no breu, longe, irreal. A roda-gigante girava, lotada de gente e gritos. Monotonia, felicidade, desejo, medo, melancolia, e o lago a beber luar. A ansiedade de Ana a atordoava."
Angústia
Estrada de terra. Mãe e filha caminham. De onde vêm, pra onde vão, se não há começo nem fim na solidão?
Elisa, nervosa, repete: Ana, anda, desgraça! A menina, barriguda, descabelada, nariz sujo, chora, se dilacera em pavor e cansaço.
Poeira esfola pés e olhos, desejos de mãe se quebram em filha.
Ana intui: viver é rasgar-se.
Sol esbraseante, o corpo de Elisa, deserto de medos e rancores. A alma, tributo à morte em vigília. A filha, fraude de amor. Odeia-a.
Acuada pela miséria, a mulher invoca a morte: se Deus me levasse. Ela sabe que Deus não improvisa, apenas consola aflitos. Que, em outros mundos, a vida sonha e, em si, a vida estrangula.
Fios de cabelos grudam no rosto infantil. Elisa grita: cara de bolacha, lesma!
Ana desentende. Um dia, compreenderá a malícia de palavras cegas.
Se estancassem na tarde até o crepúsculo, até a noite as tragar em morte!
Sonhar morrer, mãe e filha pressentem o sono último, a fuga.
Um cavaleiro passa. O trote do animal, o chapelão e a grossura do macho, a ira de Elisa, a angústia de Ana – vida sopra e afoga.
O peão finge que as ignora, refugia-se na indiferença, some na poeira, deixa no ar a solidão que o desatina.
Elisa puxa a filha pelos cabelos e a arrasta. Não queria judiar tanto da criança, mas o mal é hereditário.
Ódio herdado é mais corrosivo.
Comunhão
I
Vestido de tecido grosso, sedoso, com desenhos em relevo, não há outro que se compare.
No retrato, ele se conserva, impecável. Ana não se acredita, o que virou a menina de olhos intensos?
Ajoelhada, mãos juntas, olhar fixo em Deus, ela exerce o papel de criança abençoada, perfeita.
Primeira comunhão, receber Cristo, senti-lo diluir-se na saliva e, por fim, engolir a paz engendrada no ato.
O tecido e o feitio custaram caro, mas a mãe não se afligiu, o momento era de elevação.
II
Arrastar-se para fora de casa, imbuir-se de noite, atravessar o pântano que a assola e acordar ontem.
Serenade, Schubert, cordas vibram delicadas, machucam. A brisa leva Ana para a margem, à carne.
Insetos pululam na escuridão, quebram encantos. Ana, um resto de papel e tinta no álbum de fotos.
III
O santo padre, na roupa suntuosa, encarou a menina e disse: corpo de Cristo!
Amém, ela respondeu, e abriu a boca, colocou a língua para fora, com força e determinação.
Repetiu a cena durante anos, até desacreditar de cristãos e cair na tentação de orgasmos.
IV
O vestido criou Ana. Ela tinha dez anos e temia a força do pensamento que lhe embaralhava o olhar. A comunhão a salvou do inferno.
O tempo devastou crenças, imagens, ideias, passados e futuros. O vestido caiu em mãos mendigas, encardiu-se até o nada.
Ana não se liberta do retrato que a glorifica.
Gozo
Cansaço bateu, mas ela continuou a escrever. Palavras desconexas refletiam o estado de espírito combalido. Queria uma religião. Não encontrou. A falta de um templo para exortar Deus a desgastava, mas nçao podia forjar fé.
Pegou um livro de poemas, um de contos, outro de filosofia, um de autoajuda, encheu o criado-mudo de possibilidades. Deitou-se no chão, sentiu fervilhar a pele, os pelos eriçarem e, entre as pernas, o toque da língua do homem que a desprezava.
Acariciou-se, gesto repetitivo, sombio. A fervura da peleaumentou. Abriu a gaveta do criado-mudo, puxou o vibrador, ligou-o, a luzinha no escuro do quarto vandalizava o amor. Fechou os olhos, caiu numa ribanceira de lembranças eróticas.
O corpo, um espasmo que à alma desertava.
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