Leonardo Simões - Folha de rosto

Poesia brasileira contemporânea
Leonardo Simões - Folha de rosto - Editora Mondru - 80 Páginas -  Capa e projeto gráfico de Jeferson Barbosa - Lançamento: 2023.

A prosa poética de Leonardo Simões lida com os efeitos de uma herança racista ainda presente na formação da identidade nacional e na fracassada relação amorosa de um casal inter-racial. Um livro que nos faz refletir sobre a grande ironia de viver em um país que se imagina livre do preconceito, mas precisa conviver com as suas contradições internas: "Quando se é pretinho, cabe-se em todos os esconderijos. Escondem as ordens de fora, os mortos do extremo e aquela maldição que a caixa do supermercado diz ao dono quando dois meninos pretinhos entram no corredor de bolachas/biscoitos. [...] Pretinho é camaleão sabe? Fica mas claro conforme o ambiente onde o colocam. Na casa da minha avó de parte de mãe, eu não era pretinho. Era moreno. [..]" (pretinho - p. 66)

O autor busca o seu lugar de fala, uma voz própria, assim como a nossa sociedade, ameaçada por ideologias extremas: "Não tenho isso. Não tenho escravos parentes e os recôncavos da minha saudade não têm tanta história. Não venho do mato, nem da cidade grande. Nem tenho pai camarada ou mãe santa." (it´s a long way - p. 62). Um livro de estreia corajoso que certamente aborda temas pessoais, nem sempre fáceis de encarar: "Eu não quero fazer uma poesia cheia de obstáculos, onde eu crie tantos compartimentos que tudo vai se perder. Sem fio de saída, tá? Tampouco quero fazer um mapa pra se chegar a lugar nenhum. Os arco-íris pode acontecer antes de qualquer chuva, e serem completos como os anéis de cebola que você fazia aos domingos, só pra nós dois." (sac - p. 32)

fascismo

O ódio desliza pelos rodapés da nossa casa alugada
à procura de um buraco
para se esconder do sol.
E a única novidade é que nossa casa não tem mais furos.

[ Vâmo dá uma pausa. ]

Casal preto no branco. Preto e Branca.
Seu nariz sujo de cal. Cal da reforma.
E a furadeira no ouvido direito,
extorquindo meus pensamentos febris tão soltos pelo crânio.
Eu faço gripe ser poesia.

[                                     ]

Eu acordo de noite e consigo ver a luz
dos olhos dela no breu.
Espera que eu entenda a vergonha que sente de mim, que
      desamarre meu sono e
beije-a até sugar todas as cores do mundo.

Eu não assumo que não quero ir ao casamento.
Respondo que preciso me cuidar.
E do outro lado da linha, não há discordância.
Eu faço mentira ser poesia.

Eu faço caos na rua, na vizinhança,
eu faço as consultas medicas serem eternas
e, por que não, até a briga homem vs. mulher.

Eu extermino o que é bonito
até sobrarem apenas os peixes não utilizados nos restaurantes
       japoneses mequetrefes. Aqueles, lembra? Aqueles
       restaurantes de quando andávamos na rua sem tanto medo.

Eu faço as nossas tempestades
caberem dentro de um copo.
E posso muito bem bebê-las de uma vez.
Eu escorro algumas dores no varal
para que sequem demoradamente ao paladar da justiça.

E respondo que não preciso de nada disso.
As minhas coisas não precisam de tanto. Sempre foi assim. Nunca
      dependi de governo, muito menos deste que já começa a
      sangrar pelos molares arrancados.

Se eu pudesse fazer algo na vida,
seria engolir suas roupas e as de todo mundo,
para que a gente pudesse ter vergonha
de outras coisas.

Nesta nossa casa invadida, o barulho da reforma no vizinho se
      mistura à tua vasta reclamação.

E
eu faço a furadeira ser a grande poesia.


it´s a long way

Minha terra é Outro Tempo.
Minha Terra
é um tempo antes que eu aprendesse a falar com sotaque,
é um tempo antes que eu conhecesse a rua onde moro.
É logo lá, no momento que eu inventei que seria médico e
      depois presidente do Brasil.

Meu avô adorava essa história,
                             mas nunca falou se votaria em mim.

Minha Terra é nos braços de minha mãe na casa de minha avó,
na pior onda de febre que tive na vida.
Jogado naquele oceano vomitado de pizza e coca-cola,
com meus primos todos na sala falando de mim.

Minha Terra é quando estudei no colégio mais
      longe da minha casa
e ninguém sabia nada sobre mim ou meus pais.
Foi do zero mesmo.

Eu tinha um armário de aço e um professor de matemática
      chamado Brasil.

Ele defendia-se."Não sei por que implicam com meu nome. Do
      Irã, o professor de Física, ninguém fala nada".
O Brasil morreu de infarto.

Minha Terra é na chuva de coca-cola que jogaram no meu
      amigo, Virgílio,
à beira do aniversário da Bia.

Minha Terra é
nos textinhos que larguei sobre a carteira de minha paixão
      mais infantil.

Lembra quando a gente foi acampar em Araguaia e todo mundo
      pegou alguma coisa menos ele?
E daí, no último dia, o safado me pega um peixe enorme, com
      bigodes tão longos
quanto um fio de energia cruzando os postes da rua até a lua.

Minha Terra é outro tempo.
Nascido baiano em 1977 enquanto os exilados partilhavem
      músicas tristes
e pés atolados na saudade.

Este é o destino que roubei, o dos exilados.
O futuro de quem foi embora fugido só podia ser esse mesmo,
      visto pelos óios da cobra que mostram capoeira e vivem
      cansados da terra.

Ah... como eu queria ser esses exilados.
Ter história muito maior do que essa feita na rua sete.

Ah... como eu queria ser esses exilados.
Ter história muito maior do que essa que foi feita na rua sete.
Eu não me lembraria de tanta coisa que lembro hoje.
De ninguém!
Seria apenas um corpo celeste subindo a ladeira e
      cantando afoxés.

Ijexá.
O Ijexá voltou com tudo.
Me trouxe pra dentro de sua casa,      me deu de comer.

Ah, eu queria ter nascido em outro tempo...
Eu seria aquele que tem ancestrais pretos cobrindo as cidades
e viria de um lugar onde todo mundo é irmão de luta.

As bandeiras como saias das baianas
e o vapor da cachoeira molhando as penas dos escravos.

Não tenho isso. Não tenho escravos parentes e
os recôncavos da minha saudade não têm tanta história.

Não venho do mato, nem da cidade grande.
Nem tenho pai camarada ou mãe santa.

Falo engraçado.

Se dou uma ordem, a palavra cavuca um buraco e se enfia.

Me falta um pedaço, né? Não de corpo.
Estudei coisas sem valor.
Era pra ter sido médico.

Nunca fui ao Mercado Modelo.
Nem passeei sobre as águas com o Vapor de Cachoeira.
Nunca vi nem um milagre.
Eu gosto do destino que é fingido.
Em ficar horas largado nas horas
atrás da própria identidade. Me empresta teu futuro, vai. Me dê 
      esse gole colorido que você usou para matar a sede.

O que eu sou, hein? E isso tem conserto?
Tá na sombra?

Já falei: venho lá de antes da noite de núpcias, onde
      moram as vidas arrendadas, que desolam no mais
      ordinário da memória.

                             Minha Terra é em outro tempo.

Poesia brasileira contemporânea
Sobre o autor: Nascido em Patrocínio, Minas Gerais, mora em São Paulo desde 2010. Cursou Jornalismo e trabalha com redação publicitária. Foi finalista do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-SP em 2019 e 2021. É mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Folha de Rosto é seu primeiro livro.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Folha de rosto de Leonardo Simões

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