Otto Leopoldo Winck - Forte como a morte

Literatura brasileira contemporânea
Otto Leopoldo Winck - Forte como a morte - Editora Aboio - 256 Páginas - Capa e projeto gráfico de Leopoldo Cavalcante - Lançamento: 2023.

O mais recente romance de Otto Leopoldo Winck tem início quando a então adolescente Rosália Klossosky, filha única de uma família de imigrantes poloneses no interior do Paraná, acorda com os sinais conhecidos como estigmas, marcas que reproduzem as cinco chagas de Cristo em mártires, canonizados ou não pela igreja católica. O fenômeno, como ocorre normalmente nesses casos, devido à valorização do sofrimento pela religiosidade católica institucional e popular, atraiu fanáticos à espera de curas milagrosas e salvação espiritual para a pequena localidade rural, mesmo sem a comprovação oficial da autenticidade dos sinais pelo pároco e o médico da região. 

A narrativa prossegue com a evolução do cotidiano da família e da jovem que é considerada uma santa pelos devotos e uma fraude pelas autoridades, não havendo uma definição clara por uma ou outra opção. O autor provoca a curiosidade do leitor ao alternar trechos do futuro na mesma região, apresentando uma Rosália já casada e com filhos que agora faz parte de um movimento de ocupação de trabalhadores rurais sem-terra. As consequências de uma decisão liminar de reintegração de posse e a expectativa da invasão do acampamento pela polícia, logo se fazem sentir e o marido de Rosália passa a correr perigo após ser identificado em uma matéria sobre a ocupação.

"Quando certa manhã Rosália Klossosky se levantou, depois de sonhos inquietos – e que sonhos, meu Deus! –, percebeu que havia uma mancha levemente rosada na palma de cada mão. Sob a luz do lampião de querosene, ela observava, intrigada, aqueles estranhos sinais. Tinham o tamanho de um polegar e doíam ligeiramente. Virou as mãos. Mais ou menos na mesma posição, só que mais tênues, lá estavam as marcas. À noite, após rápidas abluções na casa de banho  por causa do frio, Rosália descobriu que debaixo do seio esquerdo – um seio púbere, que mal despontava – um outro laivo, só que mais comprido e estreito, aflorava entre as costelas. Ao descalçar os tamancos, já de volta ao quarto, qual não foi sua surpresa ao constatar marcas semelhantes no dorso dos pés." (p. 15)

O padre Hugo é o personagem que representa o elo de ligação entre as diferentes partes desta história. Ele enfrenta dúvidas sobre a sua fé e a dor da própria solidão, mas tem a convicção da necessidade da luta contra a desigualdade social. Política e religião se misturam portanto neste romance que apresenta sofisticadas citações filosóficas e teológicas como, por exemplo, o conceito de Kénosis: "Se a divindade fosse poder e resplendor, ela não seria mais do que um ídolo universal, titânico e tirânico. É necessária sua morte para que o ser humano possa viver. [...] O autoesvaziamento divino é condição sine qua non para o desenvolvimento pleno do humano. Num mundo sem ídolos, homens e mulheres podem construir sua existência, sem ilusões."

"Depois de muito planejamento, organização, motivação – terra não se ganha, terra se conquista –, o grupo do qual faziam parte, próximo a sessenta famílias, havia ocupado não fazia um ano aquela fazenda cuja propriedade, e litígio judicial , era por sinal de alguém aparentado de seu Tomás Correia de Albuquerque. Como todos os demais, eles estavam acampados em condições precárias, passando frio, tomando banho de bacia, alimentando-se mal, mas tentavam levar uma vida decente e manter o ânimo elevado. Não, ninguém dissera que seria simples. Não é porque é bom que o combate seja fácil. Pelo contrário. Numa sociedade dividida em classes, a polícia, a justiça, a imprensa – os 'gigantes' – estavam sempre do lado dos proprietários. Aos outros, os pequenos, os despossuídos, os bagrinhos como eles, não lhes restavam mais que as mãos: rudes, grossas, calosas, com unhas constantemente sujas de terra. E a esperança, e a teimosia. [...]" (p. 56)

Uma obra muito recomendada para entender melhor um "Brasil Profundo" pouco conhecido dos brasileiros em geral, talvez porque pouco presente em nossa literatura, como bem destacado na apresentação de Maria Valéria Rezende. Enfim, uma obra recomendada pela originalidade, profundidade e atualidade. Fico com a reflexão do angustiado padre Hugo que percebia cada vez saber menos: "Crer para compreender? Compreender para crer? Aqui não cabe razão nem fé, crença ou ciência. Lembro-me de uma frase de Wittgenstein, que bem poderia ter servido de epígrafe: 'Sem dúvida, não cabe mais pergunta alguma e, esta é precisamente a resposta.' [...]"

"Sua bênção, padre. Girei sobre os calcanhares. Era a mulher do tesoureiro. Deus te abençoe. Um profundo decote franqueava-me o seu colo rosado e fresco. Precisando de alguma coisa? – ela perguntou. De você, lá na sacristia, eu pensei. Não, não, graças a Deus, respondi. Então feliz Natal, padre. Feliz Natal, eu retornei. Qualquer coisa me dê um toque, ela disse, lançando-me uma piscadela. Sim, eu lhe dou um toque, dois, três até, pensei. Contudo, como ela nunca se confessava comigo, era difícil precisar em que sentido 'toque' fora dito ou qual era a exata abrangência de 'qualquer coisa'. Qualquer coisa? Qualquer. Qualquer mesmo? Sim, claro. Está bom, mostre-me os seios. Padre, você está louco? Nunca estive tão lúcido. Aqui na igreja? Não, não, pode ser lá na sacristia. Como não fiz a pergunta, não fiquei sabendo. Perguntas que nunca fiz, respostas que nunca dei – tantos caminhos, entre os descaminhos da vida, que não cruzei, que não cruzarei jamais... [...]" (p. 94)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Carioca radicado em Curitiba, Otto Leopoldo Winck é doutor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2012 recebeu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia. É autor, entre outas obras, de Cosmogonias (2017), livro de poesia, e Que fim levaram todas as flores (2019), romance, ambos pela Kotter Editorial

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