Lygia Fagundes Telles - Ciranda de Pedra

Literatura brasileira
Lygia Fagundes Telles - Ciranda de Pedra - 224 páginas - Lançamento original 1954, reeditado pela Companhia das Letras em 20/10/2009.

O talento de Lygia no domínio da narrativa curta é comparável aos maiores mestres do gênero, tais como Tchekhov e Nabokov (leia aqui a resenha do Mundo de K para a antologia de contos "Antes do Baile Verde"). Neste seu primeiro romance já fica clara esta preferência da autora pela precisão no texto, assim como as mínimas interferências do narrador, definindo em poucos traços e indícios sutis o perfil psicológico dos personagens. De fato, em "Ciranda de Pedra", o leitor vai descobrindo pelos olhos da protagonista Virgínia, uma criança na primeira parte do romance, os detalhes do seu envolvimento com as duas irmãs, Otávia e Bruna, os motivos da separação dos pais e de ter sido ela, filha caçula, a única das três filhas a ter saído de casa e ido morar com a mãe e o homem causador da separação.

Virgínia cresceu dividida entre o amor pela mãe, que sofria de problemas mentais, e o desejo de morar no rico casarão com o pai e as duas irmãs. Quando a saúde da mãe parece piorar em uma situação incontornável, ela finalmente se muda para a casa do pai, mas não consegue se adaptar ao novo estilo de vida e, principalmente, à "ciranda" formada pelas irmãs e os vizinhos Conrado e Letícia, onde ela é sempre excluída ou, pelo menos, se sente excluída. O magistral trecho abaixo, mostra como a solitária menina toma conhecimento da morte da mãe ao escutar escondida a conversa entre o pai e a governanta da casa:
"Entrou meio ofegante no vestíbulo e só diante da porta do escritório é que viu como estava despenteada, o vestido amarrotado, as meias desabando sobre os sapatos. Puxou-as, alisou os cabelos com as mãos e já ia se precipitar pela porta adentro quando ouviu uma voz. Era o pai:
— Será melhor elas irem amanhã, um pouco antes do enterro. Que é que a senhora acha?
Virgínia estacou. Enterro. Enterro de quem?
— Precisamos então prepará-las desde hoje — disse Frau Herta. — O choque será menor...
Choque? Que é que os dois tramavam em voz baixa? Retrocedendo alguns passos, ela levou a mão à boca e pôs-se a procurar avidamente a unha na qual restasse ainda algo a roer. Agitava-a um vago desejo de fuga, mas ao mesmo tempo sentia-se presa ali, o olhar cravado na porta como se ela fosse vidro transparente: via o pai inclinado sobre a mesa, as feições contrafeitas, o cachimbo fechado na mão. Falava meio entre dentes, tentando controlar o tremor da voz. Sentada defronte, a governanta, tamborilando com os dedos espalmados nos braços da poltrona.
— Sim, será preciso prepará-las — disse ele lentamente. — A senhora pode ir chamar Virgínia, falarei já com ela. E assim que as duas chegarem do colégio, que venham aqui.
— E Otávia que anda tão acabrunhada! A pobrezinha não se esquece da gata, faz alguns dias, o senhor se lembra... Precisamos pensar num jeito de dar essa notícia a ela...
O silêncio foi riscado por um fósforo, ele devia estar acendendo o cachimbo.
— Será mais fácil com Bruna e Otávia, estou pensando é em Virgínia... Ela estava certa de que a mãe tinha melhorado, que ia ficar completamente curada, ainda ontem conversou comigo.
Virgínia concordou evasivamente, é verdade, é verdade, tinha falado nisso. Foi se afastando sem ruído, aconchegada à penumbra dos cantos. Lá dentro, o diálogo prosseguia, mas as vozes foram ficando reduzidas, abafadas como se viessem de dentro de uma caixa. 'Da caixa de charutos. Se cair a tampa, a gente não ouve mais nada.' Deslizou a mão pelo espaldar de uma poltrona, lançou um olhar distraído à tapeçaria, 'aquilo era um coelho?' — e chegou até à porta. Aguçou os ouvidos. Sorriu. O pai e Frau Herta eram duas pessoinhas menores do que uma avelã, presas numa caixa, a tampa caíra e as vozes ficaram para sempre encerradas lá dentro, 'não vão sair nunca mais!' — pensou, abrindo a porta.
A luz do sol atingiu-a de chofre. Instintivamente quis recuar, mas era tarde. O enterro seria amanhã. 'Não! — sussurrou saindo em desabalada corrida pelo gramado afora. — Não sei de nada, não ouvi nada, não ouvi!...' Escondeu-se debaixo da mesa do caramanchão e fixou o olhar na casa, 'é mentira, não aconteceu nada, ela não vem me chamar, eu sonhei!'
O vulto escuro da governanta surgiu na porta. Surgiu e veio vindo rápido no sentido do caramanchão, crescendo cada vez mais, ah! a caixa ficara aberta e ela escapara de dentro, enorme, cada vez maior, já podia ver-lhe as feições, já podia até ver-lhe os lábios franzidos, a ensaiarem a frase antes de dizê-la: 'Venha que seu pai quer falar com você.'
Olhou em redor, desvairada pensou ainda em fugir. Mas estava presa no emaranhado das trepadeiras, só havia uma saída, e por esta, vinha a mulher, reta, implacável:
— Virgínia, seu pai quer falar com você.
Desabou então de joelhos, encolhida como um bicho.
— Não! Não!... — gritou tapando os ouvidos. E escondeu a face lívida nos pedregulhos do chão."
Virgínia, por vontade própria, é criada em um internato e retorna muitos anos depois na segunda parte do romance, pensando em uma vingança que irá expor muitas situações contidas no grupo familiar e amigos, envolvendo adultério e homossexualidade, temas considerados tabus na sociedade da época. Um romance já considerado clássico na literatura nacional e que vale a pena conhecer ou reler.

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