César Gilcevi - retrato do poeta quando devedor do aluguel

Poesia brasileira contemporânea
César Gilcevi - retrato do poeta quando devedor do aluguel ou poeta bom é poeta morto - Editora Letramento - 170 páginas - Ilustração da capa: Gilson Ribeiro  - Lançamento: 01/12/2018.

Os poemas do mineiro César Gilcevi são inspirados em uma população de excluídos que não tem voz própria, sobreviventes de um sistema econômico que perpetua a desigualdade social nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. O poeta, que não tem como pagar o aluguel, é também um excluído, um incômodo para nossa consciência já adormecida que prefere ignorar a realidade. De fato, a poesia politicamente engajada de Gilcevi vem para nos tirar da zona de conforto e lhe confere o título de poeta maldito, na melhor tradição de outros nomes da literatura nacional como Cruz e Souza e Roberto Piva, referências presentes em alguns dos poemas do livro.

No entanto, as influências de Gilcevi, que também é músico, não se limitam à literatura, passando por grandes letristas como Lou Reed ou bandas contestadoras na história do rock como The Smiths, assim como representantes do movimento punk nacional, sempre presentes nas periferias, vide Ratos de Porão. Para tornar ainda mais caótica a mistura cultural, o autor faz uso constante de citações bíblicas, religiões de matriz africana e a nossa tão desprezada ascendência indígena. Finalmente, alguns eventos políticos recentes da nossa história, o Impeachment de Dilma Rousseff (2016) ou a eleição de Jair Bolsonaro (2018), servem como matéria-prima, ou seria melhor dizer, combustível, para a produção poética sempre explosiva.

retrato do poeta pardo tentando escapar
do navio negreiro que ficou encalhado no subúrbio

a rua da infância continua no mesmo lugar
os amigos passam por ela
vindos da guerra ou da timidez

meninas de seios murchos amamentam meninos murchos
negras velhas banguelas áfrikas brankelas cuidam de você
e de mais um milhão de primos e primas
e irmãos e irmãs e bastardos e enteados e renegados e ajuntados
te surram com a bíblia porque você roubou uma maçã

acabou de chegar mais um carregamento
a fila começa a se formar nas bocas
pombos e anjos com diarreia se empuleiram sobre os barracos
um deus brasileiro – botokudo kaboclo yorubanto –
te dá a mão e te aponta o caminho

o céu capacho das cinzas do dia
você respira fundo: a névoa da siderúrgica é mesquinha
e quer o seu pulmão esquerdo o seu pulmão direito
seu tio está fumando crack e roubou todos os seus discos
o pai saiu em condicional finalmente voltou pra casa
o pai tomou a aliança de casamento da mãe pra vender
o pai está desmaiado sobre o próprio vômito
há uma semana a mãe está de plantão na cidade
faxinando cozinhando amamentando lavando passando
desinfetando engomando limpando o chão a casa a merda o cu dos ricos
fantasmas desaposentados pigarreiam constroem um muro
o policial surra com o cacete os joelhos do vapor
arquipélagos distantes notícias avultam rumo à febre

perfilados sobre a cratera hipotecada alcançamos a idade da desrazão
o mijo escorre sob o portão da escola
você olha em volta amassa o cigarro com o pé
e repete pra si mesmo o mantra roseano:
o que a vida quer da gente é coragem

Se Rimbaud tivesse nascido pardo, em uma favela de qualquer cidade brasileira, neste início de século, quem sabe poderia ter escrito poemas muito semelhantes. Denunciando as injustiças sociais, preconceitos e injustiças em uma sociedade que, cada vez mais, precisa lidar com a violência, o poeta reproduz sem medo o que vê em seu cotidiano e o resultado é sombrio e sem esperanças, principalmente nos poemas curtos, mas que surpreendem o leitor desprevenido, tanto pela simplicidade quanto pela contundência.

homo brasiliensis

em cada nascimento a mesma cruz
cadáver adiado na fila do sus

um rapaz latino americano

os pretos me aceitam branco
os brancos me tratam servo
a certidão atesta pardo
os índios me convidam irmão
deus me adestra cão
cavalo me honra o exu
oxóssi me guarda seu filho
homem a mulher me pragueja

antena da raça

meu primo havia acabado de sair da cadeia
veio me visitar perguntou
me falaram que você agora é poeta é verdade?
respondi sim sou
ele sorriu malandro e disse sempre soube
que você era covarde 

Neste segundo livro de poemas, depois da estreia com Os ratos roeram o azul (Editora Letramento, 2016), César Gilcevi apresenta um estilo forte e original que é muito bem resumido pela também poeta Adriane Garcia na orelha do livro: "Em seus versos, o poeta traça o surreal, o onírico e a realidade mais crua (que de tão crua parece surreal). Entre imaginação e denúncia, a poesia de Gilcevi é um coquetel de excelente mistura." É verdade que a imagem apresentada incomoda e, certamente, não é a que gostaríamos de ver em nosso país, mas, convenhamos, isso não é culpa do poeta ou da poesia.

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