Adriano Moura - Invisíveis

Literatura brasileira contemporânea
Adriano Moura - Invisíveis - Editora Patuá - 112 Páginas - Capa, Projeto gráfico e Diagramação: Alessandro Romio - Lançamento: 2020.

Em Invisíveis, recém-lançada coletânea de contos do professor e escritor Adriano Moura, os personagens são inspirados na realidade das ruas dos grandes centros urbanos brasileiros em histórias de miséria e abandono de pessoas ignoradas pela sociedade, mas que insistem em uma sobrevivência teimosa, apesar de tudo, abaixo da linha da pobreza, marginalizadas em um processo contínuo e silencioso de segregação econômica, racial e de gênero, até se tornarem invisíveis.

No texto de apresentação do livro, a professora e jornalista Marisa Loures resume com propriedade essa invisibilidade social: "Por um instante, a sensação era de folhear um jornal. Não um livro de ficção. Tamanha a realidade nua e crua jogada na minha cara conto após conto. [...] Adriano Moura escreve  para escancarar a intolerância e a hipocrisia de um Brasil formado por 'cidadãos de bem', que relega às pessoas tidas como marginalizadas ao mais completo abandono social."

Gente inadequada e que precisa ser escondida, o microconto Prato do dia dá uma boa ideia do estilo do autor e desses personagens que têm uma existência à margem da dignidade humana: "Vi hoje uma pequena família. Um homem. Uma mulher. Uma criança. Comia cada qual seu doce. Não vi tetos. Vi estradas. Na esquina havia uma moça distribuindo doces para degustação. Os três não degustavam. Era hora do almoço."

Em Carta à Princesa Isabel, a protagonista pede à filha para escrever uma carta reclamando que não é escrava, no entanto não consegue ser admitida na vaga de faxineira porque é negra e pobre, não tem "boa aparência"; já no conto O mar de Suely, uma doméstica que trabalhou por toda a sua vida para uma família, sem receber salário, se torna um peso e precisa ser descartada depois de velha. 

Carta à Princesa Isabel 
(Publicado pela primeira vez no livro misto Todo Verso Merece Um Dedo De Prosa

Senhora Dona Princesa, 

    Meu nome é Maria Rosa da Silva, tenho quarenta e cinco anos, moro em Campos dos Goytacazes. Escrevo para fazer uma reclamação. Sei que quando a senhora aboliu a escravidão no Brasil, fez com a melhor das intenções. Porém tem ocorrido o seguinte: não sou escrava e preciso trabalhar de alguma maneira, mas estão me tirando esse direito. Vou contar o que me aconteceu recentemente. Vi o anúncio de emprego em um restaurante e fui ao local bastante animada. A vaga era para trabalhar na limpeza. Sou faxineira bastante asseada e competente, já trabalhei em casa de muita madame e sempre recebi elogios. 

    Sou negra, pobre, estudei apenas até a segunda série do ensino fundamental, não tenho todos os dentes em perfeitas condições e minhas roupas estão bastante desgastadas pelo tempo. A dona do restaurante me olhou constrangida, me conduziu até a porta e disse que não queria gente como eu no estabelecimento dela. Como assim gente como eu? Ela não tirava os olhos do meu cabelo bastante desgrenhado, já que eram três horas da tarde e eu estava desde as oito da manhã na rua procurando emprego. Mas o estabelecimento dela não era lugar para mim. 

    Moro em um bairro considerado “área de risco”. Desde que comecei a trabalhar, preciso mentir sobre o endereço, para que não olhem para mim com desconfiança. Quando consigo um emprego e descobrem onde moro, sou imediatamente demitida. No entanto apenas hoje percebi que a rua do meu barraco não era o principal problema. Não tenho “boa aparência” e isso agrava tudo. 

    Soube que uma moça rica da cidade disse no facebook que a gente tinha de voltar pro tronco. A coitada não sabe que eu, por exemplo, nunca saí dele. Agora estou sem trabalho e não sei mais o que fazer. Tenho uma filha de dezesseis anos que está cursando o ensino médio técnico. Esta carta está certinha assim porque foi escrita por ela, eu apenas ditei o que vinha à cabeça. Também não sei lidar com essas modernidades de computador. Ela disse que vai enviar por e-mail, porque ninguém mais manda carta para os outros. Achei isso uma tristeza muito grande. Queria apenas saber se não dá para senhora usar todo o seu prestígio de princesa e interceder por mim nesta cidade ainda com ares de nobreza pré-queda da Bastilha (Nem sei o que é Bastilha. Coisa da minha filha Verônica que gosta de falar difícil). Prometo: assim que eu arrumar um emprego tratarei melhor da minha aparência. Minha filha saiu hoje cedo para procurar trabalho também. Espero que ela tenha mais sorte do que eu. É “parda”, porque o pai era branco. Ela, pelo menos, tem muito “boa aparência”. 

Maria Rosa da Silva

Invisível

– Você viu um rapaz que estava na sua frente? 

– Que rapaz, senhora? 

– Um rapaz assim...tipo você. 

– Tipo eu como? 

– Assim... roxo. 

– Se eu tivesse visto alguém roxo na fila teria chamado uma ambulância. A pessoa devia tá passando mal. 

– Não, você não entendeu. 

– É. Não entendi. Como era mesmo o rapaz? 

– Era assim... tipo você: jambo. 

– Jambo é uma fruta, minha senhora. Eu não sou uma fruta. Pode ser mais objetiva na descrição do rapaz? Ele estava vigiando o lugar na fila pra senhora? 

– Sim. Estava. Pedi pra ele olhar enquanto eu preenchia o bilhete da Mega-Sena. Agora eu não sei se já passou a vez ou se ele foi embora. Ele era assim...meio... 

– Negro? 

– Isso mesmo. De cabeça raspada, parecido com você, mais ou menos da sua altura. 

– Era eu mesmo, senhora.


Sobre o autor: Adriano Carlos Moura, mora em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. É mestre em Cognição e Linguagem (UENF), doutorando em Estudos Literários (UFJF). Professor de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa do IFFluminense. Atuou como coordenador da Essentia Editora do IFF. Coordenou a pós-graduação Lato Sensu em Literatura Memória Cultural e Sociedade do IFFluminense. Autor dos livros Liquidificador: poesia para vita mina (Imprimatur/7Letras, 2007), O julgamento de Lúcifer (Novo Século, 2013), Todo Verso Merece Um Dedo de Prosa (Chiado, 2016). Escreveu as peças teatrais Relatos de professores, Meu querido diário, A matrioska ou o jogo da verdade (Premiada com o troféu João Siqueira da Federação de Teatro Associativo do Rio de Janeiro – Fetaerj).

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Invisíveis de Adriano Moura

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