Vladimir Nabokov - Ada ou Ardor: Crônica de uma família

Literatura russa
Vladimir Nabokov - Ada ou Ardor: Crônica de uma família - Editora Alfaguara - 608 Páginas - Tradução de Jorio Dauster - Posfácio de Brian Boyd - Capa: Violaine Cadinot - Foto de Capa: Mary Jane Ansell - Lançamento: 2021.

Vladimir Nabokov (1899-1977) é um autor que soube como poucos tangenciar o perigoso limite entre a literatura e a perversão, se é que tal limite existe de fato. Lolita, lançado em 1955, é o seu romance mais conhecido e também controverso ao descrever a paixão doentia de um professor universitário de meia-idade por sua enteada de 12 anos, com quem se envolve sexualmente. Ada ou Ardor, publicado originalmente em 1969 e também escrito em inglês, é um romance bem mais ambicioso e complexo do ponto de vista literário, contudo volta a abordar de forma explícita os temas de pedofilia e incesto.

Ivan Veen (Van) e Adelaida (Ada) vivem uma história de amor nada convencional desde quando eram crianças, ele com 14 e ela com 12 anos, acreditando que eram primos (os seu pais, Demon e Daniel, respectivamente, eram primos e as mães, Aqua e Marina, irmãs gêmeas), no entanto, a trama já deixa claro desde o início o verdadeiro parentesco de irmãos, decorrente de uma traição da mãe de Ada, mas este fato não irá impedir o nascimento de uma paixão por toda a vida. O casal Van e Ada é o resultado de uma complicada genealogia originada por uma família aristocrática desde o século XIX até o século XX. Felizmente, esta edição apresenta um esquema com a árvore genealógica de quatro gerações da família que precisa ser consultada com atenção para o entendimento da obra.

Vladimir Nabokov

"Era ela realmente bonita aos doze anos? E ele, queria mesmo – quereria jamais – acariciá-la, realmente acariciá-la? Os cabelos pretos que cascateavam sobre um dos ombros, o jeito com que balançava a cabeça jogando-os para trás, a covinha na face pálida, essas revelações continham um elemento de identificação imediata. Sua palidez reluzia, o negror de seus cabelos resplandecia. As saias plissadas de que ela tanto gostava eram convenientemente curtas. [...] O que Van sentiu naqueles primeiros e estranhos dias em que ela lhe mostrou a casa – assim como os cantos e recantos onde em breve fariam amor – foi uma mescla de arrebatamento e exasperação. Arrebatamento, por causa de sua pele pálida, voluptuosa e inatingível, seus cabelos, pernas movimentos angulosos, seu cheiro de gazela e grama, o repentino olhar negro de seus olhos bem afastados, a nudez rústica sob o vestido. Exasperação, porque, entre ele, um estudante inábil porém muito inteligente, e aquela criança precoce, afetada e impenetrável, se estendia um vazio de luz e um véu de sombra que nenhuma força era capaz de superar ou romper." (pp. 66-7)

Outra característica marcante do romance é o tom farsesco que promove subversões na linguagem e em nossa própria História Universal ao ambientar a trama em um mundo paralelo, o planeta Antiterra (Demonia) que apresenta muitas características semelhantes à Terra, mas com a geopolítica bastante alterada; os Estados Unidos, por exemplo, incluem todas as Américas de colonização russa, o Canadá ocidental é formado por uma província de idioma russo chamada Estócia, e no Canadá oriental, Canádia, se fala a língua francesa. Logo, os idiomas russo, inglês, e francês são de uso comum na América do Norte, assim como no próprio romance. A Ásia é parte de um império chamado Tartária. Por fim, neste universo gêmeo, um evento referido como "o desastre L" fez com que a eletricidade fosse banida e os dispositivos como telefones são acionados por curiosos mecanismos hidráulicos.

"Suas pernas fortes e bem torneadas talvez estivessem mais longas, mas preservavam a brancura lustrosa e a flexibiidade dos tempos de ninfeta: ela ainda conseguia chupar o dedão do pé. O peito do pé direito e as costas da mão esquerda exibiam o mesmo pequeno sinal de nascença, discreto porém indelével e sagrado, com que a natureza havia assinado a mão direita e o pé esquerdo dele. Ela tentava pintar as unhas com o Esmalte Scheherazade (uma moda grotesca dos anos 80), mas como não era muito chegada a cuidados pessoais, o esmalte se soltava, deixando manchas feias, até que ele pediu que as unhas retornassem ao estado natural. Em compensação, comprou para ela na cidade de Ladore, onde havia muitas lojas elegantes frequentadas por turistas, uma corrente de ouro daquelas usadas no tornozelo, mas Ada a perdeu no curso de seus ardorosos encontros e, surpreendentemente, caiu em pranto quando Van disse que não fazia mal, pois outro amante um dia a encontraria e lhe daria de volta." (pp. 214-5)

Ao longo de um relacionamento intermitente de oitenta anos, o "egotismo narcisístico" do casal Ada e Van, como bem destacado no posfácio de Brian Boyd, assim como sua arrogante superioridade, faz com que desprezem todas as convenções sociais, legais e morais em nome de um ardor sensual que evolui da irresponsabilidade à pura e simples crueldade, principalmente quando se envolvem em outras relações amorosas, inclusive no caso de Ada com sua outra irmã Lucette, também apaixonada por Van, provocando um desfecho trágico para esta personagem.  

"Estavam agora reclinados numa esteira da piscina, face a face, em poses simétircas, ele sustentando a cabeça na mão direita, ela apoiada sobre o cotovelo esquerdo. A alça do sutiã verde do maiô tinha escorregado pelo braço fino, revelando gotas e fios d´água na base do mamilo. Um abismo de poucos centímetros separava a camisa de jérsei que ele usava do ventre nu de Lucette, a lã preta de seu calção de banho da máscara púbica verde e encharcada. O sol esmaltava o osso ilíaco dela; uma depressão sombreada levava à cicatriz da operação de apêndice feita cinco anos antes. Seu olhar semivelado o fixava com uma avidez persistente e opaca – e ela tinha razão, estavam de fato bem sozinhos, ele havia possuído Marion Armborough pelas costas de seu tio em condições bem mais complexas, com a lancha saltando mais que um peixe-voador e seu anfitrião mantendo uma espingarda de caça junto ao volante. Sem alegria, sentiu que a robusta serpente do desejo se desenrolava pesadamente; com amargor, lastimou-se por não tê-la exaurido na Villa Vênus. Aceitou o toque da mão cega que lhe subia pela coxa e maldisse a natureza por ter plantado uma árvore nodosa estourando de seiva vil entre as pernas dos homens. De repente Lucette se afastou, deixando escapar um bem-educado 'merda'. O Éden estava cheio de gente." (p. 464)

A narrativa de seiscentas páginas é rica em jogos de linguagem e citações literárias a autores como Flaubert, Joyce, Proust, Púchkin, Tchékhov, Tolstói, entre muitos outros. O interesse de Nabokov pela Entomologia e o estudo do Xadrez também são recorrentes em muitas passagens. Repleta de perversões e subversões, esta é uma obra que deve ser lida por todos que se interessam pela literatura ocidental.

Sobre o autor: Vladimir Nabokov nasceu em São Petersburgo em 1899. Com a Revolução Russa, a família deixou o país natal e viveu primeiro em Londres, depois em Berlim. Em 1940, Nabokov mudou-se para os Estados Unidos, onde foi professor na Wellesley College e na Universidade Cornell. Seu primeiro romance escrito em inglês, A verdadeira vida de Sebastian Knight, foi publicado em 1941, e sua obra mais conhecida, Lolita, lhe valeu fama internacional. Morreu em 1977, em Montreux, Suíça.

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