Luiz Gustavo Medeiros - O corpo útil

Literatura brasileira contemporânea
Luiz Gustavo Medeiros - O corpo útil - Editora Patuá - 124 Páginas
Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2021

O livro de estreia de Luiz Gustavo Medeiros é uma antologia de 16 contos com eixo temático inspirado nos conflitos das relações familiares nos grandes centros urbanos. O prefácio da escritora Maria Fernanda Elias Maglio resume muito bem a questão de que "A boa literatura se faz essencialmente de verdade." E, de fato, para escrever bem é necessário ter algo verdadeiro para transmitir, algo que pode ser fruto da experiência ou da sensibilidade, mas que deve provocar a identificação e aceitação desta verdade, mesmo que "constrangedora" no leitor (não necessariamente concordância) e, nas narrativas de "O corpo útil", encontramos essa marca muito forte de autenticidade, principalmente na construçao psicológica dos personagens.

O autor, apesar de estreante, já domina uma técnica própria com poucos e precisos diálogos inseridos nos blocos narrativos do texto em itálico, uma característica muito interessante que insinua a postura dos protagonistas mais por meio de suas ações do que pelo que é dito. Assim, notamos como os personagens masculinos carregam uma herança misógina que, para eles (e também algumas das mulheres presentes nos contos), é natural, inconsciente.

"Não sei se chega a ser doença, mas ela tinha uma obsessão com limpeza que me dava nos nervos. Era encontrar uma sujeirinha na cozinha, um farelinho que fosse, e ela começava. Uma bola de neve. Da pia, depois de lavar a louça, ela ia pra área de serviço tirar as roupas da máquina pra estender no varal, depois saía da cozinha e resolvia passar pano no chão da sala e, pra arrematar, passava flanela nas porcelanas portuguesas, item por item. Sua mulher tem um pouco disso também, não tem? Lembro de você se queixar que ela até pausava o filme pra lavar o pote da pipoca, quando acabava. Se for verdade, só pode ser doença. E eu pedia pra ela relaxar, dizia que não precisava arrumar tudo de uma vez, mas não adiantava. Quantas vezes a gente não se atrasou pra uma festa ou até pro cinema porque ela não conseguia conter a necessidade pa-to-ló-gi-ca de arrumar a casa toda hora? Se você ajudasse eu não ficaria o dia todo aqui, era a resposta de sempre, praticamente um emblema que ela repetia regularmente." - Trecho do conto Cenas de um casamento (p. 16)

No conto "O atendente se dirige a mim" essa visão machista fica flagrante quando um casal é atendido para renegociação de uma dívida. Em uma sequência implacável, o protagonista deixa clara a sua carga de ódio pela esposa: "antigamente era mais fácil, era só mandar ela ficar quieta, uma mão levantada já era suficiente, mas a cada dia que passa mais insolente ela fica" ou buscando apoio em uma velada comunicação com o atendente: "O atendente me olha como se dissesse: como é que você aguenta?"  Uma situação que presenciamos, infelizmente, com bastante regularidade em qualquer agência bancária.

"O atendente se dirige a mim, a empresa deve quatro anos de anuidade, gentil, atento, mas um pouco amedrontado, cobrar é sempre difícil. De vez em quando ele desvia o olhar pra minha mulher, não mais que um relance e um sorriso de canto de boca, pra parecer simpático – fico apreensivo porque se der corda ela desanda a falar e aí já viu. Ele empurra a folha com os valores anotados em minha direção e eu puxo pro lado oposto ao dela, pra esconder mesmo, não suporto esse pescoço esticado xeretando. Verifico os valores enquanto escuto a inquietação insuportável dela na cadeira e pigarreio uma, duas, três vezes, pra ver se ela sossega e não inventa de se meter – já basta querer entrar comigo, não era nem pra ter vindo, podia ao menos ficar lá fora. De nada adianta. Primeiro as mãos na mesa, depois ela arrasta a cadeira pra frente, põe também os cotovelos e respira fundo pra começar a falar mas, de início, desiste, olha pra mim, como se ponderasse se deveria ou não me fazer passar vergonha de novo, até que: pode parcelar em quantas vezes? – começo a rir, o atendente me acompanha com um riso mais discreto, empático, parece que me entende, pode deixar que eu vejo com ele, meu bem, e ela olha pro alto e solta o ar numa bufada de impaciência que me deixa otimista, tomara que vá lá pra fora folhear revistinha." - Trecho do conto O atendente se dirige a mim (pp. 45-6)

O corpo útil, que empresta o título ao livro, é talvez o melhor conto desta coletânea e, apesar de narrado em terceira pessoa, nos coloca muito próximo das reflexões da personagem: "Ela tem uma insegurança que parece congênita" e percebe como o próprio corpo não lhe pertence, "seu corpo tantas vezes violado pelo filho, pelo marido; e se convence, ao menos por alguns segundos, de que é uma mulher vitoriosa", contudo, no fundo, tem a certeza de que a sua vida se transformou em um "mosaico de ausências".

"O que ameniza é a compreensão de que está no lugar certo. Ela é o que foi orientada a ser – a filha, a esposa, a mãe, a mulher – e a especulação de um destino desconhecido a amedronta porque na juventude as alternativas nunca lhe foram apresentadas. A estrutura – e ela ri da expressão dramática, cafona – que a aprisiona é sólida e confortável – e imprescindível, como se ela precisasse ser regida por qualquer coisa alheia. Ainda que tenha suas queixas, gosta de onde está e, por isso, rejeita o que é novo. Ela não quer experimentar do que não entende. Não quer encontrar nada que não esteja dentro da estrutura – sua maior ambição é achar a melhor maneira de estar onde já está. [...] É uma mulher bonita dos pés à cabeça, reconhece ao atentar pra firmeza relutante dos seios que fizeram com que o homem que é agora seu marido a convidasse pra sair quando ela tinha seus vinte e poucos anos – e ri um riso espantosamente franco, espontâneo, em meio a um semblante ao mesmo tempo alegre e constrangido. Recorda-se de quando era só uma criança com o corpo miúdo, indefinido e inútil – um corpo e uma existência que ainda eram suas. À medida que os anos passavam quanto mais definido seu corpo se tornava e quanto mais se descobria, menos se pertencia – ela se dá conta de que está cavando uma fuga da estrutura e a apatia então retorna." - Trecho do conto O corpo útil (pp. 110-1)

Sobre o autor: Luiz Gustavo Medeiros nasceu no Rio de Janeiro, em 1990, e mora em Goiânia desde 2002. É formado em Ciências Sociais pela UFG e mestre em Literatura pela UnB. Em 2020, seu livro venceu o Prêmio Hugo de Carvalho Ramos (o mais antigo prêmio literário em atividade no país), organizado pela União Brasileira dos Escritores - Seção Goiás e que já revelou autores como Bernardo Élis, Yêda Schmaltz e Gilberto Mendonça Teles.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O corpo útil de Luiz Gustavo Medeiros

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