Kenzaburo Oe - A substituição ou As regras do Tagame

Literatura japonesa
Kenzaburo Oe - A substituição ou As regras do Tagame - Editora Estação Liberdade - 352 Páginas - Tradução de Jefferson José Teixeira - Capa: Ciro Girard - Lançamento: 2022.

Com este lançamento, a Editora Estação Liberdade dá início à publicação da trilogia autobiográfica de Kenzaburo Oe (1935-2023), Prêmio Nobel de Literatura de 1994. Na verdade, toda a obra de Kenzaburo Oe é marcada por elementos autobiográficos e engajamento político sobre questões polêmicas do Japão moderno, como o ativismo antinuclear e pacifista, posições que já provocaram reações de grupos nacionalistas de extrema-direita, diferindo da delicadeza e tradicionalismo apolítico de outro grande autor japonês também agraciado com o Nobel de Literatura em 1968, Yasunari Kawabata (1899-1972), criticado por propagar uma imagem exótica do Japão no ocidente.

Neste A substituição ou As regras do Tagame, publicado originalmente em 2000, Kenzaburo Oe mistura ficção e realidade, assim como constantes referências à literatura ocidental. Utilizando como protagonistas o seu alter ego Kogito Choko, um famoso escritor na terceira idade, e Goro Hanawa, representando o seu cunhado e cineasta Juzo Itami, que cometeu suicídio em 1997. Outros personagens do livro também são inspirados em amigos e familiares de Oe, como a esposa, nomeada como Chikashi Choko (Yukari Oe) e o filho Akari Choko (Hikari Oe), portador de deficiência mental e constantemente citado em outros livros do autor.

A narrativa tem início com o suicídio de Goro Hanawa, mas não segue uma sequência cronológica, oscilando livremente entre passado e presente. Pouco antes de cometer o suicídio, Goro encaminha para Kogito um conjunto de 40 fitas cassete e a audição dessas fitas logo se transforma em uma rotina obsessiva para o cunhado e amigo, que inclusive responde em allgumas partes, pausando as fitas e criando assim um diálogo impossível com o "Outro Lado": "...É isso. Agora estou me transferindo para o outro lado. Porém, nossa comunicação não se interromperá."  No trecho abaixo, está a explicação sobre a origem do processo "Tagame".

"No trem a caminho para a piscina – mesmo próximo dos sessenta continuava a frequentá-la –, Kogito percebia ocasionalmente ser a única pessoa usando um gravador desse tipo antigo. Às vezes, notava algum homem de meia-idade ouvindo algo e movendo os lábios, e deduzia estar concentrado em alguma fita de conversação em inglês. Até pouco tempo, os vagões viviam lotados de jovens ouvindo música, mas agora todos falavam pelo celular ou moviam os dedos ágeis de olhos grudados na tela do aparelho. Kogito até sentia saudades dos ruídos agudos e irritantes que vazavam dos fones de ouvido. Hoje em dia, mantinha seu gravador pré-Walkman dentro da mochila, dissimulado em meio aos apetrechos de natação, com os fones de ouvido sobre seus cabelos grisalhos. A ele restava apenas a sensação de ser um solitário exemplar de uma velha geração desatualizada. / O gravador de fitas cassete de modelo antigo havia sido um presente recebido por Goro quando participou, ainda como ator, de um comercial para um fabricante de produtos eletrônicos. Enquanto o aparelho era do tipo mais comum, sem atrativos em particular, de corpo retangular e design trivial, o formato dos fones de ouvido se assemelhava ao dos besouros aquáticos, os tagame, que Kogito costumava pegar quando criança nos córregos bosque adentro. Kogito confessou a Goro sentir como se tivesse, agarrado de cada lado de sua cabeça, um daqueles inúteis besouros." (pp. 14-15)

O tema das gravações remete a conversas entre os dois amigos ao longo de toda a vida, passando pela tradução de poemas de Rimbaud e outros autores ocidentais até a rotina de criação literária e produção de filmes, mas alguns eventos se destacam como o ataque sofrido por Goro a partir de membros da Yakuza que feriram o seu rosto, como ato de retaliação pela realização de um filme sobre essa organização criminosa ou as aventuras amorosas de Goro sempre em destaque nos jornais sensacionalistas. Da parte de Kojito, chama a atenção os recorrentes e bizarros atentados terroristas contra a sua pessoa, em destaque no trecho abaixo.

"Para as pessoas de fora, Kogito chamava de 'gota' o problema no pé que havia cerca de quinze anos aparecia a intervalos de alguns anos. Desde pouco antes dos quarenta, o aumento do nível de ácido úrico provocava essas crises. Devido à medicação tomada com regularidade, a taxa nunca passou de seis ou sete. Ainda assim, a cada quatro ou cinco anos, Kogito aparecia apoiado em uma bengala e arrastando a perna esquerda ao andar. Se amigos ou o pessoal da mídia lhe perguntassem a razão, respondia ser uma crise de gota, causa aceita com mais facilidade do que supunha. / Na verdade, a segunda, terceira e quarta crises não tinham diagnóstico clínico de acúmulo de ácido úrico. Três homens apareciam e, embora na primeira vez parecesse haver um mal-entendido, a partir da segunda, seguravam Kogito com mais experiência, de modo a não poder oferecer resistência, descalçando seu sapato do pé esquerdo e, para ser exato, também sua meia. Miravam na segunda falange do polegar do pé e então deixavam cair uma pequena bala de canhão, redonda e enferrujada. Tal 'procedimento cirúrgico' é que teria provocado a gota." (p. 135)

Kogito e Goro compartilham um segredo do passado, ocorrido durante a adolescência, quando mantiveram contato com elementos de um grupo nacionalista que planejava, após o final da Segunda Grande Guerra, um ataque armado ao acampamento do Exérctio americano para "reescrever uma suposta última página do derrotismo que permeava a história dos tempos de ocupação". Com esta finalidade, tentam conseguir alguns rifles automáticos danificados, no almoxarifado do acampamento, mesmo sabendo que seriam exterminados.

Ao longo da audição das fitas, Kogito tenta entender os motivos que levaram Goro à decisão sobre o suicídio, mas acaba encontrando um propósito maior: "Enquanto ouço sua voz pelo Tagame, acredito que a alma de Goro exista ou, segundo minha definição, um espírito incorporando algo muito próximo ao corpo físico. Não se trata apenas da reprodução através das fitas gravadas. O que Goro criou antes de partir foi um sistema especial. Sua alma está deslocada deste espaço no qual vivemos. Por acaso os dois espaços estão ligados pelos circuitos do Tagame...".

"– Hoje, os aparelhos de vídeo estão difundidos nos lares, e há jovens ue assistem ao mesmo filme uma ou duas dezenas de vezes. Mas seria oportuno à apreciação da obra de arte ver um filme à exaustão em vídeo e dentro de um cômodo? Na sua área de atuação, existem bibliotecas para os livros, mas geralmente as pessoas os mantêm em suas estantes. Mesmo que alguém demonstre interesse em determinado escritor ou obra, seria possível ler um livro várias vezes num curto espaço de tempo? Há casos em que a pessoa volta a ler determinada obra após um intervalo. Mesmo assim, em uma vida, ela poderia ler A montanha mágica no máximo cinco ou seis vezes, não acha? [...] Por isso, quero produzir um filme que não seja necessário assistir repetidas vezes. Um filme que possa ser entendido por inteiro ao ser visto uma única vez com olhos frescos. Esteja certo de que não irei lançar mão de métodos torpes como close-ups (Goro pronunciou corretamente a palavra em inglês) em excesso para indicar o que o espectador deve ver. Adoto como princípio filmar a cena em sua totalidade usando todo o quadro, oferecendo aos espectadores o tempo para que vejam todos os detalhes com atenção." (pp. 194-6)

Sobre o autor: Kenzaburo Oe nasceu em 1935, em Ose, vilarejo das florestas de Shikoku, a menor das quatro principais ilhas do Japão. Começou a escrever em 1957. Compôs um poderoso ensaio sobre o bombardeio atômico de Hiroshima e o terrível legado da catástrofe, além de uma extensa lista de ficção que se utiliza bastante do Japão pós-guerra para retratar uma geração marcada por tanta tragédia. Assume então uma posição pacifista e antimilitarista que marcaria fortemente sua atuação cívica. A vida e a carreira literária de Oe entraram em crise com o nascimento de seu primeiro filho, Hikari, portador de uma deformidade craniana que lhe resultou em comprometimento cognitivo. Apesar disso e mesmo por causa disso, Oe adquiriu novo fôlego e nova perspectiva sobre a vida e a escrita, em que Hikari tomaria uma posição central. No Brasil, já foram publicadas as obras Uma questão pessoal (2003), Jovens de um tempo novo, despertai (2006), 14 contos de Kenzaburo Oe (2011) e Morte na água (2021), todas pela Companhia das Letras. Recebeu os mais importantes prêmios literários do Japão, incluindo o Akutagawa, o Tanizaki e o Yomiuri; em 1994 foi premiado com o Nobel de Literatura. Atualmente vive com a mulher e o filho Hikari em Setagaya, bairro de artistas e intelectuais nos arredores de Tóquio.

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