László Krasznahorkai - Sátántangó

Literatura húngara contemporânea
László Krasznahorkai - Sátántangó - Editora Companhia das Letras - 232 Páginas - Tradução de Paulo Schiller - Capa de Guilherme Xavier - Imagem de capa "Mulher e Monstro" de Manuel Messias dos Santos - Lançamento: 2022.

Sátántangó ou Tango de Satã na ótima tradução direta do húngaro de Paulo Schiller, é a obra de estreia e considerada a mais importante de László Krasznahorkai, um autor que ainda não havia sido publicado no Brasil, mesmo tendo sido vencedor do prestigiado Man Booker International Prize em 2015. O romance, lançado originalmente na Hungria em 1985, foi adaptado para o cinema pelo cineasta Béla Tarr em 1994 em uma produção em preto e branco de sete horas e meia de duração, o tempo que leva a leitura do livro, segundo Béla Tarr. Na verdade, Sátántangó demanda bem mais tempo e, principalmente, atenção do leitor, devido à prosa que utiliza longas e caudalosas frases em parágrafos que ocupam todo os capítulos muitas vezes em fluxos de consciência. 

Krasznahorkai é conhecido por romances distópicos e sombrios, normalmente classificados como pós-modernos, inspirados na literatura de Franz Kafka e Samuel Beckett. Sátántangó não é diferente, inclusive com uma epígrafe de O Castelo de Kafka: "Nesse caso eu o evito esperando por ele." O cenário é um assentamento ou fazenda coletiva, típica dos regimes comunistas do leste europeu na época da cortina de ferro, um ambiente com as instalações destruídas onde habitam personagens loucos e desajustados: camponeses falidos, um médico alcoólatra observando obsessivamente seus vizinhos e jovens prostituídas em um moinho abandonado. Irimiás, um antigo morador a quem atribuem poderes extraordinários, e dado como morto, está a caminho do local, com seu companheiro, Petrina.

"Numa manhã do final de outubro, não muito antes que as primeiras gotas das chuvas impiedosamente longas de outono se desprendessem sobre a terra rachada, ressequida, do lado ocidental do assentamento (para que depois o mar pútrido de lama tornasse intransitáveis os caminhos, e também a cidade ficasse inacessível), Futaki despertou ao som de sinos. A quatro quilômetros de distância a sudoeste, nas antigas terras de Hochmeiss, existia uma capela solitária, porém lá não apenas não havia sino como a torre desabara no tempo da guerra, ao passo que a cidade, por sua vez, ficava muito afastada para que dela chegasse algum som. Além disso, o badalar plangente, triunfante, não lembrava sinos distantes, mais parecia que o vento o tinha trazido de bem perto ('Como se viesse do moinho...') para aqueles lados. Ele apoiou os cotovelos no travesseiro para olhar pela janela minúscula da cozinha, mas através do vidro meio embaçado o assentamento, imerso no amanhecer azulado e no gemido dos sinos que aos poucos silenciaram, ainda estava mudo e inerte: no extremo oposto, entre as casas distantes umas das outras, somente pelas cortinas da janela do médico se filtrava uma luminosidade, nesse caso porque havia anos o morador não conseguia adormecer no escuro. [...]" (p. 11)

A notícia da chegada de Irimiás logo se espalha, fazendo com que um grupo de camponeses se reúna na taverna para esperá-lo, onde discutem, bebem e dançam ao som de um acordeão. Durante todo o tempo, uma chuva contínua castiga a região e uma menina com problemas mentais, mais uma desajustada entre os desajustados, após matar o seu gato, se suicida com veneno de rato: "Não tinha razão para se impacientar. Sabia bem que seus anjos logo viriam buscá-la." O autor avança a sua narrativa em um ambiente apocalíptico formado por casas em ruínas, aranhas e ratos, assim como bêbados e fracassados que não conseguem mais separar o sonho da realidade, a vida da morte. A comunidade irá colocar a solução para os seus problemas nas mãos de Irimiás, uma tragédia anunciada.

"'Bem que você poderia ligar o aquecedor!', disse Kerekes, o fazendeiro. Mutucas outonais zumbiam em torno do lustre rachado escrevendo oitos imprecisos na luz baça, batendo repetidas vezes na porcelana suja, para depois do golpe surdo caírem de novo na rede mesmérica tecida por elas e continuarem a interminável, embora limitada, movimentação até que a luz por fim se apagasse; porém a mão de quem dependia esse gesto piedoso ainda apoiava o rosto barbado do taverneiro que, sob o som da chuva que não tencionava se deter, ao observar sonolento, piscando, as mutucas, resmungou: 'Vão todos à merda!'. Halics estava sentado no canto junto da porta, numa cadeira de ferro oxidada, na capa de trabalho meio desabotoada que – caso quisesse se sentar – ele tinha de dobrar na frente dos testículos, pois, na verdade, a chuva e o vento não poupavam nenhum deles, sendo que a capa, além de tudo, o tornava mal-apanhado e disforme, apagando as linhas de sua silhueta; toda a elasticidade do tecido secara, portanto ele não o protegia das águas faladeiras do juízo, mas sim como Halics sempre dizia, 'das chuvas internas que facilmente se transformavam no destino', as quais, emanadas de seu coração ressequido, noite e dia lavavam sem parar seus órgãos indefesos. Em torno de suas botas crescia uma poça, em sua mão ganhava peso o copo vazio, e era inútil ele procurar não ouvir que atrás, com os cotovelos apoiados no 'bilhar', voltado na direção do taverneiro com seu olhar sombrio, Kerekes sorvia o vinho lentamente, entre os dentes, em goles ávidos e grosseiros. [...]" (pp. 69-70)

Podemos entender o romance, na falta de definição melhor, como uma crítica ao regime comunista da época na Hungria e a coletivização da agricultura inspirada na política da antiga URSS, mas é muito mais do que isso; na verdade uma abstração sobre a falta de sentido da vida e a inútil esperança em uma salvação externa que nunca virá. Uma leitura difícil sem dúvida, contudo muito recompensadora porque trata-se se uma obra única na literatura contemporânea mundial, tanto na forma quanto no conteúdo, como destaca Nicole Krauss: "O tipo de escritor que pelo menos uma vez em cada página encontra um modo perfeito de expressar algo que alguém sempre sentiu mas nunca foi capaz de descrever." Elogio maior não pode haver.

"[...] Futaki não estava sozinho, a excitação era perceptível no salão, em especial quando Kráner olhou para fora pela porta de vidro e se manifestou, solene, ('A parte baixa do céu está clareando'); as pessoas se animaram, o vinho correu de novo, principalmente a sra. Kráner voltou a si e gritou, estridente: 'O que é isso? Um enterro?!'. Sacudindo sensual a imensa cintura, atravessou a taverna e se deteve diante de Kerekes: 'Ei, não durma você também! Toque alguma coisa naquele acordeão!'. O taverneiro ergueu a cabeça e arrotou com força. 'Fale com o taverneiro, não comigo. É dele.' 'Ei, taverneiro!', gritou a sra. Kráner. 'O acordeão está por aí?' 'Está... vou trazê-lo...', resmungou ele, e desapareceu no depósito. 'Mas depois aguentem esse vinho todo.' Foi para o fundo, junto das torneiras, pegou o instrumento revestido de teias de aranha, deu-lhe uma limpada e em seguida o levou para Kerekes: 'Veja bem! Cuide del porque é propriedade delicada...'. Kerekes afastou um pouco de si o instrumento, vestiu as alças, tocou alguns compassos, em seguida se curvou para a frente e esvaziou o copo: 'Então, onde está o vinho?!'. A sra. Kráner se sacudia de olhos fechados no meio da taverna. 'Está bem, leve uma garrafa para ele!', disse ao taverneiro e, impaciente, bateu os pés. 'O que houve bando de preguiçosos? Não durmam!' Pôs as mãos na cintura e gritou para os homens que sorriam: 'Vermes covardes! Ninguém tem coragem de me acompanhar?!' Halics, porque não queria tolerar ser visto como medroso, se pôs de pé e, como se não ouvisse que sua mulher o advertia ('Fique aqui!'), saltou à frente da sra. Kráner. 'Um tango!', gritou e endireitou-se. [...]" (p. 127)

Literatura húngara contemporânea
Sobre o autor: László Krasznahorkai nasceu em Gyula, Hungria, em 1954. Vencedor do Man Booker International Prize em 2015, é autor dos romances The Melancholy of Resistance (1989), War and War (1999), Destruction and Sorrow beneath the Heavens (2004), Baron Wenckheim’s Homecoming (2016), entre outros. Sátántangó, publicado originalmente na Hungria em 1985, é seu primeiro livro traduzido no Brasil. O comentário de W. G. Sebald resume bem a importância do autor na literatura atual: "A universalidade da visão de Ksznahorkai rivaliza com a de Almas mortas de Gogol e supera em muito todas as preocupações da escrita contemporânea."

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