Dave Eggers - Heróis da fronteira

Literatura norte-americana
Dave Eggers - Heróis da fronteira: Um romance - Editora Companhia das Letras - 416 Páginas - Tradução de Rubens Figueiredo - Capa e ilustração de Rafael Nobre - Lançamento: 2022.

Josie decide abandonar um estilo de vida tipicamente consumista em Ohio, assim como uma série de problemas particulares, partindo para uma viagem com os dois filhos, Paul e Ana, rumo ao Alasca, o maior dos estados norte-americanos em extensão, e que, contudo, segundo a Wikipédia, tem menos habitantes do que qualquer outro dos 50 estados dos EUA, com exceção de Wyoming e Vermont. Josie logo irá descobrir que o Alasca, comprado do Império Russo em 1867, e também chamado de "A última fronteira", pode trazer outros problemas ainda mais difíceis de resolver do que os seus antigos fantasmas mas, com todos os riscos envolvidos, apresentar também uma oportunidade de crescimento para toda a família.

Josie com quarenta anos, trabalhava como dentista e se divorciou recentemente, ela está sendo processada por uma antiga paciente, tendo perdido o seu consultório odontológico e se culpa pela morte de Jeremy, um jovem conhecido, na Guerra do Afeganistão, por ter incentivado a decisão dele de se alistar: "Então, onde estavam os heróis? No lugar de onde ela tinha vindo, todo mundo era covarde. Não, existia um homem corajoso e ela ajudou a matá-lo." A gota d'água para a decisão radical de abandonar tudo vem quando o ex-marido pede para apresentar os filhos para a família da sua atual noiva. Nesta espécie de road movie, o único plano concreto de Josie na viagem é o de encontrar Sam, uma irmã postiça, que ela não vê nos últimos cinco anos e mora no Alasca.

"Existe a felicidade orgulhosa, a felicidade nascida de um trabalho bem-feito diante de todos, anos de labuta valiosa, e, depois, sentir-se cansada, contente, rodeada pela família e pelos amigos, banhada de satisfação e pronta para um descanso merecido – o sono ou a morte, tanto faz. / Existe também a felicidade da ruína pessoal. A felicidade de estar sozinha, embriagada de vinho tinto, no banco do carona de um antigo trailer, estacionado em algum canto do extremo sul do Alasca, olhando para a silhueta das árvores negras, com medo de pegar no sono, temendo que, a qualquer momento, alguém abra o cadeado frágil da porta do trailer e mate você e seus dois filhos pequenos, que estão dormindo no compartimento em cima da cabine do motorista. / Josie espremia os olhos diante da luz fraca de um demorado anoitecer de verão, numa parada de estrada, no sul do Alasca. Ela estava feliz naquela noite, com seu vinho pinot, naquele trailer, no escuro, rodeada por bosques desconhecidos e, a cada novo gole de seu copo de plástico amarelo, o medo diminuía. [...]" (p. 7)

Paul, apesar de ter apenas oito anos, é o elemento mais sensato da famíia e protege a irmã Ana de cinco anos, ela que é definida assim: "um animal de olhos verdes, com uma explosão de cabelos irracionalmente vermelhos e um dom especial para localizar, em qualquer cômodo, o objeto mais possível de ser quebrado e, depois, quebrá-lo com um incrível entusiasmo." Um personagem à parte no romance é o velho trailer alugado, chamado de Chateau: "O limite de velocidade na maioria das rodovias do Alasca parecia ser de cem quilômetros, mas o Chateau não conseguia passar de setenta e sete." Josie e as crianças reaprendem a conviver nesta nova casa e suas limitações. 

"O Chateau chacoalhava, sacudia, e o barulho abafava todas as vozes. Por natureza, um trailer levava consigo toda sorte de equipamentos de cozinha – no caso deles, refugos de segunda mão da casa de Stan e de sua esposa, a casa toda forrada de branco – e todos os pratos chacoalhavam, todos os copos tilintavam, batendo uns contra os outros. Havia pratos, aparelhos de chá, xícaras de café, talheres. Havia uma cafeteira. Havia um forno. Havia panelas e potes. Havia uma frigideira grande. Um liquidificador. Uma batedeira, para o caso de alguém querer fazer um bolo numa forma redonda. Tudo isso ficava guardado dentro dos armários, armários baratos e frágeis, como tinham em casa, mas os armários de casa não ficavam batendo uns nos outros, numa briga por espaço, a setenta e sete quilômetros por hora, levados por pneus e amortecedores muito velhos. E, como o veículo todo era uma máquina agonizante, os armários eram mal montados e só em alguns pontos fixados ao veículo. Portanto, o barulho era como o que se ouve durante um terremoto. Os talheres faziam o barulho de correntes arrastadas por algum fantasma inquieto. E a cacofonia aumentava, ficava muito mais alta, quando Josie diminuía a velocidade ou acelerava, ou subia ou descia uma ladeira, ou passava por uma lombada ou por um buraco." (pp. 50-1)

Em complemento às montanhas e a natureza selvagem, existe também a ameaça real dos incêndios florestais que perseguem Josie e os filhos ao longo de toda a jornada, obrigando-os a se deslocar cada vez mais para o norte e, gradativamente, a família vai ocupando outros espaços além do trailer, muitas vezes de forma ilegal, como quando invadem um chalé ou passam uma temporada nas instalações de uma antiga mina de prata abandonada. As experiências provocam o amadurecimento de Paul e Ana e a viagem, que era para ser apenas uma divertida temporada de férias em famíla, aos poucos se transforma em uma acirrada luta pela sobrevivência.

"Os dias eram assim, cada um tinha quilômetros de extensão, nenhum destino e nenhuma possibilidade de arrependimento. Comiam quando tinham fome e dormiam quando estavam cansados e não tinham nenhum lugar para ir. A cada intervalo de poucos dias, Ana perguntava: 'A gente vai morar aqui?', ou 'A gente vai para a escola aqui?', porém, a não ser por isso, as duas crianças pareciam ter a noção de que sua temporada no chalé era uma espécie de férias compridas, alheias a qualquer calendário, para as quais não existia um fim inevitável. Todo dia de manhã, Paul e Ana desenhavam e jogavam cartas e jogos de tabuleiro e, perto do meio-dia, caminhavam até a cachoeira, para brincar na água rasa. Agora estavam na mata e a mata era inviolável. Ana agia com nobreza e seu rosto reluzia com um brilho do outro mundo. Crianças, Josie se deu conta, são de fato como bichos. Deem para elas comida limpa, água limpa e ar fresco e seus cabelos ficarão reluzentes, seus dentes, brancos, seus músculos, vigorosos e a pele brilhante. Mas dentro de casa, contidas, vão ficar cheias de sarnas, de olhos amarelos, cobertas de feridas que elas mesmas causaram." (pp. 328-9)

Literatura norte-americana contemporânea
Sobre o autor: Dave Eggers nasceu em 1970, em Boston. É jornalista, escritor e editor da McSweeney’s, editora independente com sede em San Francisco, e da revista The Believer. Escreveu diversos livros, dos quais a Companhia das Letras publicou O que é o quê, Os monstros (versão romanceada do roteiro que originou o filme Onde vivem os monstros), Zeitoun, Um holograma para o rei e O círculo ― os dois últimos ganharam as telas do cinema com Tom Hanks no papel principal. Foi também roteirista do filme Distante nós vamos de Sam Mendes. Eggers é ganhador do Dayton Literary Peace Prize, ocupou a presidência da Anistia Internacional em 2015 e é membro da Academia Americana de Artes e Letras.

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