Jarid Arraes - Corpo desfeito

Literatura brasileira contemporânea
Jarid Arraes - Corpo desfeito - Editora Alfaguara - 128 Páginas - Capa de Julia Masagão
Ilustração de capa: Rafaela Pascotto - Lançamento: 2022.

Violência doméstica é uma expressão insuficiente para resumir os constantes abusos físicos e psicológicos sofridos por Amanda, uma protagonista de apenas doze anos que narra este forte romance ambientado em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), um polo religioso e cultural conhecido pela imagem do Padre Cícero. A partir do ponto de vista ingênuo de Amanda, que mora sozinha com a avó depois da morte da mãe e do avô, ficamos conhecendo o histórico de abusos dessa família que tem início com os maus-tratos sofridos por Fabiana, mãe solteira de Amanda aos dezesseis anos, assim como a relação doentia de seus pais, avós de Amanda. A inspiração de Jarid Arraes vem de outros casos semelhantes, nos quais a violência e a negligência com as crianças é praticada justamente por aqueles que deveriam cuidar e proteger.

Após a morte trágica de Fabiana no dia em que Amanda completa doze anos, a avó decide mandar esculpir uma estátua da filha como se fosse uma santa, para se redimir de sua culpa e omissão, assim tem início uma estranha seita com base na culpa, obediência e sacrifício. A avó impõe uma série de comportamentos obrigatórios para Amanda, como a proibição de ouvir música, assistir televisão e filmes, não cortar os cabelos, práticas de jejuns prolongados, roupas simples e sandálias, três banhos diários com a porta do banheiro aberta, trabalhos domésticos forçados, além de recorrentes castigos físicos. A menina sofre um processo de desintegração do próprio corpo, imagem central do livro, tendo a sua própria infância roubada aos poucos.

"Mainha não quis mendigar a paternidade, decidiu que me criaria sozinha, queimou os rastros e colocou um peso de esquecimento no que podia ser deixado vazio. apesar das ameaças dos punhos encalotados de vô Jorge, que só aceitaria um casamento, ela começou a trabalhar na mesma semana em que largou as boas notas e o talento para esportes. Tirou a lona que cobria a máquina de minha bisavó, dona Mocinha, e passou a oferecer serviços de costura a preços abaixo da média. Começou com barras de roupas e pequenos consertos, mas logo ensinou às próprias mãos a coordenação do pedal com o tremelique do motor, todas as agulhas, linhas e pontos. Ganhou paixão especialmente por enxovais de bebês, cheios de bicos e bordados. O meu foi o primeiro enxoval que fez na vida, e escolheu a cor verde, que eu detesto, para não errar meu sexo. / Costumava trabalhar virada de lado. Já com a barriga grande e o umbigo estufado, não conseguia ficar de frente sem se machucar. Estava costurando um vestido quando começou a sentir minha inconveniência doendo, mas só pediu ajuda para ir ao hospital depois de terminar os botões. Era um vestido de primeira comunhão, a família tinha urgência. Eu não. O parto exigiu doze horas de dor e cansaço, mas vó me contou que ela nunca gritou. Apertava os dentes de cima contra os dentes de baixo e rangia a mandíbula orgulhosa demais para chorar ou pedir injeção. Aos dezesseis, segurando sua cria com cheiro de mijo, estava apenas começando sua tentativa de autoafirmação. E, pelo costume aprendido nos meses anteriores ao meu nascimento, escolheu o trabalho como condenação." (pp. 12-3)

As pessoas ao redor não se envolvem, justificando a omissão pelo fato de que a educação dos filhos é responsabilidade somente da família. A única chance de carinho e compreensão para Amanda vem de sua melhor amiga, Jéssica, mas o fanatismo da avó com a seita criada por ela própria, assim como as restrições à liberdade da neta são cada vez maiores, impedindo o comparecimento de Amanda à escola e dificultando a aproximação da amiga. Os efeitos desta lavagem cerebral, disfarçada como prática religiosa, são particularmente cruéis porque impostos em uma criança de doze anos, com a personalidade ainda em formação e sem alternativas para se defender ou escapar desta situação.

"Depois da ceia, vó me ordenou tomar banho. Eu já estava, de certa forma, acostumada a fazer isso de porta aberta. Todos os dias, tinha que tomar três banhos enquanto rezava Santa Mãe, Santa Filha, e não podia demorar mais do que dez minutos. Essa regra era desconfortável, mas não era impossível de seguir. Eu dava as costas para o buraco que antes era a porta de madeira e me banhava. Só podia usar sabão de coco, tanto para o corpo e o rosto quanto para o cabelo. Já tinha pegado abuso do cheiro do sabão, mas, como tantas outras coisas, estava mais do que conformada, me sentia até muito convencida.  Vó dizia que era errado reclamar da vida, que nossa vida era boa e devíamos agradecer o esforço de mainha e todas as intervenções generosas que ela fez para que aquele conforto nos alcançasse. Quando ela falava assim, eu tentava puxar mais o fio do assunto, queria saber se entre essas intervenções estaria a morte de vô Jorge. Não acreditava que mainha fosse capaz disso, emsmo que no mundo dos santos ela pudesse enxergar o coração das pessoas. Talvez o coração de vô Jorge fosse muito pior do que o de vó. Não doente, mas apodrecido." (pp. 64-5)

É difícil ficar indiferente à leitura de Corpo desfeito, Jarid Arraes soube escrever um romance forte e corajoso sobre um tema que precisa ser discutido sempre: toda forma de violência física e/ou emocional/psicológica praticada contra crianças não pode ser tolerada pela sociedade. Amanda nos ensina que o pior que pode acontecer, principalmente para uma criança, é perder a esperança em um dia feliz: "Estou carregando pedras dentro de mim, coisas pontudas, e tanta coisa que não sei descrever. Antes, quando eu acordava, mesmo depois que mainha morreu, eu esperava que aquele dia pudesse ser melhor do que o dia anterior. Hoje acordo e não sei se posso imaginar um dia que não seja terrível. Como seria um dia melhor na minha vida?"

"Seu rosto era cinza, opaco, rígido como concreto, e vó falava de um jeito formal, usando palavras que eu nunca tinha ouvido e não entendi. De tudo o que disse, como se estivesse recitando um texto do século catorze, fui capaz de entender que ela recebeu mais um sonho e que a estátua de mainha chorava. Gotas caíam sobre a mesinha, molhando as flores de plástico. De repente, as gotas ficaram maiores e mais pesadas, derrubaram as velas e a mesa que servia de altar quebrou. Quando vó olhou de novo para o rosto de mainha gravado na madeira envernizada, a estátua ganhou carne, ossos e pele. Era mainha outra vez. Estava num lugar que parecia ser o Paraíso, cercada por penas que se mexiam como asas. Na sua cabeça, contrastando com seus cabelos pretos, uma coroa de brilho prateado, toda cheia de pedras brancas. Falou que queria uma prova de nosso amor e de nossa fé. Disse que todos os santos recebem jejuns espontâneos, mas ela tinha que pedir, e isso era nossa falha, nossa culpa. Vó abriu os olhos e se jogou no chão, a testa encostada nos azulejos frios, os braços esticados como se esperasse a passagem de mainha pelo caminho. Pediu perdão, prometeu um jejum de uma semana, o sonho já estava acabado e ela falava sozinha dentro do quarto vazio." (p. 72)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora de As Lendas de Dandara (Editora da Cultura, 2016), Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (Seguinte, 2020), Redemoinho em dia quente (Alfaguara, 2019) ― vencedor do prêmio APCA e do prêmio Biblioteca Nacional ― e Um buraco com meu nome (Alfaguara, 2021). Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita para Mulheres. Tem mais de setenta títulos publicados em literatura de cordel.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Corpo desfeito de Jarid Arraes

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